Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.
Gosto de pensar que os amigos são como irmãos escolhidos, presenças indefetíveis, que se mantêm como aliados intransigentes de causas e crenças. Vejo-os como um exército de cavaleiros protetores.
No início do milénio, o quotidiano nacional foi invadido pela febre do acrílico. Nessa época, já pairava sobre a humanidade a ideia de que o plástico não era afinal tão fantástico, embora não passasse pela cabeça de ninguém abolir as palhinhas, nem fazer compras no supermercado com sacos recicláveis. O acrílico era moderno e resistente, com as vantagens do vidro e sem os seus inconvenientes, pensámos. Passou a ser pau para toda a obra na decoração e utensílios para o lar: cadeiras, prateleiras, secretárias, saladeiras e caixas. Foi uma moda que passou, porque o vidro é sempre o vidro, e quem aprecia o original raramente se contenta com imitações. O acrílico racha, risca-se com facilidade, e com o tempo fica baço.
Com o tempo, muitas coisas ficam baças. Entusiasmos esfumam-se, paixões perdem viço e ideais esvaziam-se de sentido. Com o tempo, tecidos e quadros desbotam sob o efeito prolongado dos raios UV, camisolas ganham borbotos, mas o vidro mantém-se, inalterado e transparente.
Gosto de pensar que a amizade é uma caixa de vidro transparente onde ficam as pessoas que verdadeiramente interessam. É possível existir amizade pura entre homens e mulheres? Claro que sim. Será mais fácil para homens que cresceram com irmãs e para mulheres que tiveram irmãos. A convivência familiar traz uma proximidade natural. Um homem habituado desde criança a ver batons e blushes e a ouvir as conversas de raparigas irá sentir-se mais à vontade do que outro, criado numa irmandade exclusivamente masculina. A intimidade aprende-se em pequeno, tal como os bons modos à mesa, ou a caminhar do lado de fora do passeio como gesto de proteção.
Contudo, para muitos homens é difícil ou até inimaginável cultivar a amizade com mulheres. Fazem lembrar o clube do Bolinha, das histórias aos quadradinhos da Luluzinha, cujo lema era menina não entra. Para muitos, é tentador, mas desconfortável; alguns admitem que o desejo acaba por estar sempre latente.
Perante isto, a pergunta que me ocorre fazer é: então e depois, qual é o problema? O desejo é da condição humana, tal como ter olhos, braços e pernas. O escritor suíço Charles Ramuz vai mais longe quando afirma que a única verdadeira tristeza é a ausência de desejo. As amizades constroem-se com tempo, confiança e gestos de generosidade e de solidariedade que fazem com que aquela pessoa ganhe o seu lugar na nossa vida.
Gosto de pensar que os amigos são como irmãos escolhidos, presenças indefetíveis, que se mantêm como aliados intransigentes de causas e crenças. Vejo-os como um exército de cavaleiros protetores. Se a vida me ensinou que os homens são predadores e que o instinto de atração é dos primeiros a manifestar-se, também aprendi que a amizade casta entre pessoas de sexos diferentes pode atingir um elevado grau de intimidade, justamente por não existir nenhum tipo de envolvimento erótico/sexual entre as partes.
Um desses cavaleiros, compincha de longuíssima data, sempre que me apresenta a outras pessoas, faz questão de dizer que eu sou o seu melhor amigo. Nos dias de hoje, em que parece ser cada vez mais difícil construir relações amorosas sólidas e duradouras, o que seria de nós sem esses pilares fundamentais que nos oferecem proteção e companhia? A beleza das amizades é esta: tudo é leve, sério e transparente e, em muitos casos, para toda a vida.
Quantos cabem na sua caixa?