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O difícil trabalho dos psicólogos do INEM

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Texto de Sofia Teixeira

A tragédia entrou-nos pelos olhos dentro. E com ela, o aparato de pessoas a dar resposta a uma das maiores catástrofes das últimas décadas em Portugal: bombeiros, militares, polícia, proteção civil, médicos, enfermeiros, técnicos de emergência pré-hospitalar, pilotos, assistentes sociais, investigadores, políticos, peritos forenses. Mas também uma equipa que, não por acaso, poucos viram e de pouco se fala (exceção às declarações, no início da semana, do presidente do PSD, Pedro Passos Coelho): os psicólogos de emergência do INEM.

O Centro de Apoio Psicológico e de Intervenção em Crise (CAPIC) apoia vítimas de eventos traumáticos e os próprios elementos da instituição que são confrontados com situações mais exigentes. Para entender a essência do trabalho que desenvolvem, é preciso pensar que, naquele fatídico sábado, as pessoas que estavam na zona de Pedrógão Grande passaram a manhã a fazer coisas prosaicas – varrer a casa, a regar a horta, a rir com a vizinha, a combinar com os filhos um almoço na semana seguinte. Horas depois, muitas delas não tinham casa, não tinham horta, não tinham vizinha, não tinham filha e não haveriam de fazer na próxima semana nada daquilo que tinham planeado naquela manhã. Estavam vivos, mas a vida como a conheciam tinha sido consumida pelas chamas.

Os primeiros socorros psicológicos podem, em casos destes, ter tanto impacto na saúde mental, como os primeiros socorros médicos têm na saúde física. Esta abordagem, usada sobretudo após uma situação catastrófica, procura estabilizar as vítimas dos eventos traumáticos que estão em stress agudo, apoiando-as emocionalmente, fornecendo cuidados práticos e avaliando necessidades e preocupações para ajudar a pessoa a começar a sarar as feridas.

Os primeiros socorros psicológicos podem ter tanto impacto na saúde mental, como os primeiros socorros médicos têm na saúde física. Esta abordagem, usada sobretudo após uma situação catastrófica, procura estabilizar as vítimas dos eventos traumáticos que estão em stress agudo, apoiando-as emocionalmente.

Acabada de sair do posto de comando operacional de Avelar (Ansião, a vinte quilómetros de Pedrógão Grande), cansada com a intensidade dos últimos dias, Sónia Cunha, psicóloga e coordenadora da equipa, explica que partiram para o terreno quando foi dado o primeiro alerta, na tarde de sábado, dia 18. Objectivo: proporcionar os primeiros cuidados psicológicos a todos os afetados pelo incêndio. Mas cedo perceberam que os sete elementos ativos na equipa não chegariam para dar conta da tarefa hercúlea que havia pela frente. «Houve o envolvimento de psicólogos de várias outras entidades como a Segurança Social, PSP, Cruz Vermelha, Policia Marítima e Exército. Até agora [dia 22] foi feita intervenção psicológica a perto de 900 pessoas.»

O que se diz a estas pessoas? As que perderam família, as que perderam vizinhos, as que ficaram sem casa, as que viram a morte chegar com as chamas? «Mais importante do que aquilo que dizemos é o que a pessoa diz», responde Sónia Cunha.

«É ouvi-la. Deixá-la expressar emoções. Falar é uma das formas mais importantes de voltar a estruturar os próprios pensamentos, de ter consciência do que está a sentir: da raiva, da revolta, do medo, da sensação de perda de controlo.» Infelizmente, não há uma caixinha mágica de soluções e estratégias que ajudem a minorar o sofrimento e a dor. «Quanto mais cedo é iniciada esta intervenção psicológica e mais cedo a pessoa se começa a estruturar, melhor será o prognóstico.» Uma parte destas pessoas tem risco ou probabilidade de vir a desenvolver perturbações de stress pós-traumático e depressão, por isso uma das avaliações feita pela equipa é precisamente identificar quem deve ter ajuda de continuidade para recuperar.

Fundado em 2004, o Centro de Apoio Psicológico e de Intervenção em Crise do INEM tem sete psicólogos e fez no ano passado 539 deslocações ao terreno, assistiu 1572 vítimas e atendeu 8997 chamadas. . Fotografia de Orlando Almeida/Global Imagens.

Mas o dia-a-dia da equipa nascida em 2004 não é feito deste tipo de situações de exceção, associadas a situações com muitas vítimas como os incêndios, inundações, explosões ou acidentes com autocarros. Em 2016, por exemplo, houve apenas seis. E, no entanto, são diárias as tragédias: o potencial suicida que se senta no topo do prédio decidido a saltar, a mãe que vê morrer um filho afogado, o marido que fica viúvo depois da morte violenta da mulher. Dramas discretos que não aparecem nas notícias mas que acontecem todos os dias: em 2016, a equipa deslocou-se 539 vezes ao terreno, assistindo um total de 1572 vítimas, e atendeu 8997 chamadas.

De cada vez que marcamos 112, a chamada é atendida pela polícia, sendo encaminhada para o INEM e atendida num dos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) se a emergência for médica. O operador usa um sistema informático com algoritmos de triagem, que vai sendo preenchido com informação até se chegar a um plano de resposta. O plano pode incluir o accionamento dos meios tradicionais – ambulância, viatura de emergência médica (VMER) ou helicóptero – mas também a transferência da chamada para um psicólogo, que garante o atendimento 24 horas por dia no CODU, ou o acionamento da UMIPE, a Unidade Móvel de Intervenção Psicológica de Emergência, constituída por um psicólogo e um técnico de emergência pré-hospitalar (TEPH). Há quatro UMIPE, sediadas em Lisboa, Porto, Coimbra e Faro e, neste momento, embora tentem, nem sempre conseguem garantir cobertura 24 horas por dia.

«A maioria das nossas intervenções surge de um pedido feito pelas próprias equipas de emergência médica ou polícia que já estão no local», explica Sónia Cunha. O motivo mais frequente é dar apoio em situações de morte inesperada ou traumática, sobretudo se as vítimas forem crianças ou jovens. A lei exige que haja uma notificação formal de morte, que é da competência de um médico que verifica o óbito e que o deve comunicar ao familiar direto mais próximo, se houver algum no local. «Muitas vezes logo durante o processo de suporte avançado de vida, pedem a nossa presença porque se percebe que vai ser necessária. As manobras são mantidas até se considerar que é inviável e, entretanto, nós chegamos para apoiar a equipa na notificação de morte.» Também há situações em que não há um familiar no local, os médicos regressam à base e essa tarefa cabe então à polícia que lhes pede apoio.

Ninguém gosta de dar más notícias, mas alguém tem de o fazer. E é bom que o faça bem e os estudos provam que a forma como são transmitidas é determinante no nosso processo de aceitação e na forma como superamos o luto. Por isso, há regras para as dar.

Ninguém gosta de dar más notícias, mas alguém tem de o fazer. E é bom que o faça bem e os estudos provam que a forma como são transmitidas é determinante no nosso processo de aceitação e na forma como superamos o luto. Por isso, há regras para as dar. Primeira, a vítima tem um nome e ele deve ser usado. Antes de receber a notícia, a pessoa deve ser informada que vai receber más notícias. Segue-se uma comunicação do que aconteceu de forma breve, simples e muito clara que inclui a palavra «morreu». Não há lugar a eufemismos como «não resistiu» ou «não conseguimos salvá-lo». Sónia Cunha exemplifica: «Ricardo, o meu nome é Sónia e sou psicóloga do INEM. Lamento, mas tenho uma má notícia para lhe dar. O seu filho João esteve envolvido num acidente de viação muito grave e morreu há pouco.» É isto. Depois espera-se a reação. E a reação é expectável. A pessoa pode não acreditar, depois, quando acredita, vai chorar, vai gritar, pode cair no chão, pode partir coisas quando dá murros e pontapés. A reação não deve ser contida porque faz parte do processo e é necessária. O mutismo costuma ser pior sinal.

«A experiência vai dando preparação e capacidade de antecipação, mas nunca se torna mais fácil», diz Joana Anjos, 36 anos, cofundadora da equipa de psicólogos do INEM, há 13 anos. «Cada vez é como se fosse a primeira porque cada história é diferente, porque as pessoas são diferentes e porque nós estamos diferentes.» Margarida Mota, no INEM desde 2009, recorda-se bem da primeira ida ao terreno. Foi um suicídio num sítio pequeno, rural, com muitos familiares, amigos e conhecidos da vítima por perto. «A imagem que guardo é de dezenas de pessoas juntas, muitas delas com reações muito extremas. Havia carga emocional muito forte causada pelo sentimento de culpa dos familiares. Questionavam-se porque é que aquele homem tinha optado pela morte em vez de ficar com eles.»

Mal chegam ao local, explica Sónia Cunha, é necessário avaliar as prioridades e as necessidades. «Há sempre necessidades emocionais, mas muitas vezes também necessidades práticas: mais informação, contactar familiares ausentes e dar a notícia a outros familiares que chegam. Um dos primeiros passos é sempre proteger fisicamente a pessoa. Se estamos expostos ao público e por vezes mesmo à comunicação social, a prioridade é sempre retirar as pessoas para um sítio mais privado.» Apesar de a função da equipa ser a intervenção apenas no momento de crise, para lidar com as primeiras reações, fazem depois um seguimento telefónico para perceber como está a situação a evoluir e para, caso seja necessário, fazerem a ponte com outros serviços de saúde de continuidade.

Em Pedrógão Grande «houve psicólogos da Segurança Social, PSP, Cruz Vermelha, Polícia Marítima e Exército», diz a psicóloga Sónia Cunha. Entre os dias 17 de junho (data do incêndio) e 22 de junho «foi feita intervenção psicológica a perto de 900 pessoas». Fotografia de Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens.

A negociação da aceitação de ajuda em casos de suicídio iminente – quando já está em curso a tentativa de suicídio – ocupa o segundo lugar nos motivos de acionamento da UMIPE. Os desfechos são maioritariamente positivos e muitas pessoas telefonam mais tarde à equipa a agradecer. E também há casos como o daquele homem que, em agosto de 2012, entrou na sede do INEM para agradecer pessoalmente a Sónia Cunha a intervenção que a psicóloga tinha feito um ano antes, quando o seu único fito era pôr fim à vida. Queria dizer-lhe que a sua vida tinha mudado para melhor.

Mas nem sempre é possível evitar que a tentativa siga o seu curso. Em 2011, por exemplo, numa ativação para um suicídio iminente, Sónia Cunha percebeu imediatamente que dificilmente podia evitar o pior. «Na avaliação de risco inicial entendi que não ia haver hipótese de criar uma plataforma de comunicação com a pessoa. Estava bloqueada e incapaz de dialogar.» E sem diálogo não há negociação e sem negociação é provável que nada possa ser evitado. «Havia uma operação tático-policial no local, como há sempre nestas situações, e informei logo os responsáveis policiais.» Por isso, quando o já esperado salto acabou por acontecer, à vista de todos, a queda foi amparada pela polícia e bombeiros. O médico e enfermeiro iniciaram de imediato o suporte de vida para o tentarem salvar. Contra todas as expetativas, a história teve um final feliz: foi este mesmo homem de 50 anos que, um ano depois, entrou na sede do INEM para agradecer a Sónia e à equipa. «Foi como falar com alguém depois da morte», diz ela.

Como se sente o peso de negociar com alguém a sua própria vida? Como se vive essa responsabilidade? Margarida Mota garante que não pensa nisso. «Penso no que a pessoa me está a dizer, não nas eventuais consequências.» Joana concorda. «Sim, estou ali com a pessoa e para a pessoa. Por isso é que as negociações geralmente demoram muito tempo. Estamos ali para ouvir, para tentar perceber, para a ajudar a pensar e, sobretudo, para mostrar que há alternativas.» O processo é feito com base numa relação de confiança, é genuíno e honesto porque as palavras são inúteis se não forem sentidas. «Pedimos à pessoa que partilhe o que sente, mas nós fazemos o mesmo. Se vejo a pessoa numa posição de que não gosto digo: “Ricardo, tenho medo que caia. Pode passar um pé para dentro enquanto conversa comigo para termos a certeza de que não vai acontecer nada inesperado?”», diz Joana.

A entrega é absoluta e o foco é total. Às vezes percebem que o tempo passou porque o dia se transforma em noite e o calor em frio. «Estamos tão focados que nos esquecemos por momentos de nós e das nossas necessidades», diz Sónia. «Sou mulher, mãe, filha, tenho a minha existência, mas quando estou no terreno esqueço isso tudo, deixo de ter preocupações minhas. E só olho de novo para o relógio quando me vou embora.» Flexibilidade é a palavra de ordem porque quando entram de turno não sabem se vão terminar o dia no mesmo sítio e à hora marcada ou a 250 quilómetros de distância da base e quatro ou cinco horas depois do fim do turno.

Um dos grandes desafios dos psicólogos de emergência é o equilíbrio delicado entre empatia e demasiado envolvimento emocional. «As situações tocam-nos, mas tem de haver empatia sem nos transformarmos num amigo da família», diz a psicóloga Joana Anjos.

Um dos grandes desafios dos psicólogos de emergência é o equilíbrio delicado entre empatia e demasiado envolvimento emocional. «As situações tocam-nos, mas tem de haver empatia sem nos transformarmos num amigo da família. Se perco algum distanciamento, transformo-me em alguém que também está a sofrer e deixo de conseguir ajudar», diz Joana Anjos. «Há momentos em que o melhor que podemos fazer é retirarmo-nos por uns momentos para nos voltarmos a equilibrar», completa Sónia Cunha.

Esses desequilíbrios momentâneos levam à história de Maria. A filha tinha acabado de morrer no seu quarto, apesar das insistentes tentativas de reanimação da equipa médica, mas Maria continuava sem aceitar. Perante esta reação da mãe, a equipa médica sentiu necessidade de chamar a UMIPE ao local e foi a psicóloga Joana Anjos, ela própria mãe de cinco filhos, que foi prestar este apoio. Quando chegou, Maria recusava-se a ver a filha. «Havia uma reação de afastamento, uma rejeição, um não querer ver e não querer estar com ela. Sem críticas nem julgamentos, o que procurei fazer com aquela mãe foi esta reflexão: é ou não importante ter um último momento com a filha?” O tempo passava e a maca que iria levar a bebé chegou. E então aconteceu. Maria entrou no quarto, aproximou-se da cama, acarinhou a filha e cantou para ela. Cantou-lhe a canção que lhe costumava cantar para a adormecer e confortar. Despediu-se.» Talvez tenha sido uma das situações mais marcantes para mim, ter ajudado aquela mãe a poder despedir-­se da bebé.»

«Claro que este trabalho nos muda», diz Joana Anjos. «Quando temos situações com crianças, chegamos junto dos nossos filhos e estamos diferentes.» Ao chegar a casa depois de um dia desses abraça os filhos com mais força. Ralha menos. Os disparates, saltos e gritos não são uma chatice, são uma bênção. Eles estão ali. Em casa não há conversas sobre trabalho mesmo estando o marido também a trabalhar no INEM, como técnico de emergência pré-hospitalar (TEPH).

Dão muito, mas também recebem muito, garante Joana. «Temos o privilégio de tocar a vida destas pessoas e isso é imenso. Ainda que estejamos ali para tentar ajudar, há uma generosidade enorme de quem nos deixa estar presentes em momentos tão únicos. E isso muda-nos para melhor.»


O QUE ELES FAZEM

Teleassistência através do 112.
Em situações de crise psicológica, descompensação de doença psi­quiátrica, ideação suicida, vítimas de abuso e violência física ou sexual.
Intervenção no terreno.
Através das Unidades Móveis de Intervenção Psicológica de Emergência (UMIPE) para assistência a vítimas ou familiares de acidentes e em casos de risco iminente de suicídio.
Situações de exceção.
Intervêm em situações inesperadas, como incêndios, inundações, explosões, catástrofes naturais e humanas, entre outros.
Apoio aos profissionais do INEM.
Apoiam as equipas de emergência em situações exigentes e potencialmente traumáticas.
Formação aos profissionais do INEM.
Fazem formação na área das competências psicológicas aos técnicos de socorro e emergência.
Estágios curriculares e de observação.
Recebem estudantes de psicologia ou outras áreas da saúde com interesse na intervenção em crise psicológica.
Investigação científica.
Fazem investigação nas áreas de intervenção psicológica em crise, stress nos profissionais de emergência médica pré-hospitalar, coping, papel do psicólogo no Sistema Integrado de Emergência Médica (SIEM).

E DEPOIS DE APAGADAS AS CHAMAS?
O trabalho com as vítimas de um incêndio não acaba depois de apagadas as chamas, enterrados os mortos e reconstruído o que foi perdido. Nem todos os que vivenciaram o acontecimento traumático vão desenvolver problemas psicológicos a longo prazo, mas têm um risco mais elevado disso. «A maioria das pessoas adapta-­se e não sofre perturbações no futuro, mas muitas vão precisar de seguimento psicológico», diz a psicóloga Sónia Cunha. «É importante que no nosso sistema nacional de saúde existam agora respostas para continuar o trabalho que começou a ser feito aqui nos primeiros dias.» Alguns dos sintomas individuais de perturbações pós-traumáticas a que os envolvidos no incêndio devem estar atentos são os flashbacks repetidos das situações que viveram, ansiedade severa, insónias, dificuldade em funcionar normalmente e um sentimento de culpa por ter sobrevivido ou não ter conseguido ajudar outras pessoas.

 


NOTA: as datas, nomes e alguns pormenores das intervenções da equipa relatadas nesta reportagem foram alterados para respeitar um dos princípios fundadores do apoio prestado por esta equipa: o respeito pela privacidade e sofrimento das vítimas de emergência psicológica.