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Livraria

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Rubrica "Cidadania Impura", por Valter Hugo Mãe.

Quem gosta de livros demora se o deixarem. Queremos demorar. Vamos comprar por uma espécie de indomável obstinação.

Tínhamos de ir à Póvoa de Varzim para a livraria e, passada a porta, havia um balcão onde fazíamos o pedido que precisava de estar definido de casa. E eu abri um papelinho onde tomara nota de um nome e disse: queria um livro de poesia deste senhor. E a velhota respondeu: não temos nada desse autor. E era tudo. Para os meus 14 anos de idade, o obstáculo daquele maldito balcão era intransponível, até porque levava as moedas contadas e não podia arriscar grandes ideias, a miopia não me deixava ver as lombadas à distância e a velhota de facto não tirava da cabeça que eu ia aflito para gastar duzentos escudos em troca de um só verso de sonho.

Para a minha geração, e na extensa vastidão do comércio de província, entrar num estabelecimento comercial era ser suspeito. Tudo nos estava fora do alcance das mãos. Era fundamental saber referir o que buscávamos. Não existia isso de se perambular entre os objectos apelativos, escolher por inspirada sorte, fuçar isto e aquilo até nos parecer que era chegado o momento de gastar raríssimos duzentos escudos. Havia no Porto melhores oportunidades, claro, entrando depois nos anos de 1990, onde haveria de preponderar, por exemplo, a Leitura, livraria de acervo tremendo que forneceu felicidade à minha biblioteca pessoal por anos. Contudo, a modernidade e a impressão de não sermos mais recebidos como potenciais bandidos, chega às livrarias de Portugal sobretudo com a FNAC.

Estivera numa gigante FNAC de Les Halles, em Paris, e suspirava por aquilo na minha vida. A abundância entregue às mãos, os bancos onde espiolhar umas páginas, a luz certa, o café, a possibilidade de demorar sem que nos venham perguntar mil vezes se queremos ajuda, como quem nos apressa a compra e nos enxota da loja. Ainda hoje há quem não tenha entendido esta ideia básica. Quem gosta de livros demora se o deixarem. Queremos demorar. Vamos comprar por uma espécie de indomável obstinação. Da poesia à vida das tartarugas, da paz na Palestina até ao tremendo de Enoque, tudo subitamente nos pode interessar. A única maneira de o saber é que nos permitam mexer nos livros, ficar nos livros, deixar que nos escolham mais do que os escolhermos a eles.

Hoje, exactamente hoje, domingo, 28 de Fevereiro, passam 23 anos desde a abertura da primeira FNAC portuguesa, a do Centro Colombo, em Lisboa. Essa data marca a gratificante mudança da relação dos leitores com a compra dos livros e com o encontro dos autores. Mudou tudo. Diria que os livros se fizeram livres. Normalizou-se a livraria como um espaço de entrada descomplicada, descomprometida, transformando-o num local de regresso constante e onde passou a fazer sentido o encontro, todos os encontros. Os autores desceram à realidade. Aproximados dos leitores, intensificou-se a partilha.

Das mais pequenas às maiores casas de livros, todos os espaços se atemparam com esta forma de ser e de estar. Rebentaram os malditos balcões, trincheira para ferir sonhos. O valor de uma cultura assim é inestimável. Por isso, dar os parabéns à FNAC é celebrar a maturação do mundo do livro em Portugal. A maturação de Portugal.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)