Joel Neto

Xuéu


Agora deu em chamar-nos pelo nome, o Artur. Sentado no banco de trás do carro, atravessando o corredor entre o quarto e a cozinha, perdido ao fundo da sala das crianças da livraria, escolhe aquele que quer chamar, e lá vai ele:
– Xuéu?
– Xuééuu!
– Xuéu!
Ou então:
– Mata?
– Maata!
– Mataaaaa!

Fá-lo com um semblante prático, muito casual, que às primeiras atenções se vai dissolvendo no mais puro, enervante e adorável ar de gozo. Essa é a primeira coisa que registo: o modo como o seu sentido de humor vai ganhando cambiantes, adquirindo ferramentas, derrubando barreiras. A segunda é uma certa insubmissão, um zelo provocatório que lhe vamos detectando noutros gestos ainda, e que tem tanto de promissor como de inquietante.

Combinámos não responder. Não vá tão longe o republicanismo: nem a Marta é “Mata” nem eu sou “Xuéu” – ela é “Mamã” e eu sou “Papá”, coisa que ambos imagináramos conseguir deixar cair com maior facilidade. Portanto, bem pode ele andar um quarto de hora ali, para trás e para a frente, a estudar-nos as micro-expressões:
– Xuéu!
Ou:
– Maaaaata!

A verdade é que, enquanto não nos chamar:
– Papáá!
Ou:
– Mamã!

Nenhum de nós responde. Temo-lo conseguido, e é uma das poucas coisas em que eu sou ainda melhor do que a Marta. A mim nem os sinais de exasperação nem a simulação do choro me demovem: se ele não disser “Papá”, ou pelo menos “Pai”, nada feito.

Mas, ao mesmo tempo, pergunto-me: até onde devo ir para garantir a ordem e a intimidade entre nós sem sacrifício da tendência dele para a subversão? Ou por outra: como protejo o meu filho – desde logo, como o ajudo a proteger o direito a ter um pai sob cuja asa aninhar-se, em caso de necessidade – sem lhe matar o espírito?

É um assunto com que começo a debater-me, e provavelmente a Marta também. Primeiro, acho – isto se calhar vai parecer vaidade, e provavelmente é – que não seria fácil ser-se filho de nós os dois sem alguma vez sentir um impulso mínimo para violar as regras. Mas, sobretudo, é do mesmo lugar que essa tentação provém que brota quase tudo aquilo que importa: a criatividade, o rasgo, a mudança, o crescimento. E talvez eu agora pudesse dizer: que seca não seria a vida dele sem essas coisas? Mas é mais do que isso: há uma certa categoria de pessoas para quem viver sem as ditas coisas nem sequer é uma opção, elas simplesmente não conseguiriam – e, se se esforçam por isso, destroem-se.

Evidentemente, tudo seria mais simples se nós tivéssemos uma ideia mais definitiva sobre qual a verdadeira natureza do nosso filho. Quase todos os dias nos parece ter chegado lá, mas não é impossível – a verdade é essa – que ainda não tenhamos assim tão mais do que desejos.