Silêncio
Há umas semanas foi a M. Sentávamo-nos no restaurante da freguesia, com uns velhotes – não me lembro quais – conversando na mesa ao lado, quando ela suspirou:
— Se aqui estivesse uma amiga minha, já se tinha posto a discutir com eles.
Os velhos estavam a ser machistas. Falavam de como as mulheres haviam cozinhado isto ou aquilo, do facto de as terem deixado em casa a passar roupa. E – claro – a dita amiga não era uma amiga: era a própria M., a quem aquela conversa irritava, e que só não interveio porque estava de férias em minha casa.
Balbuciei qualquer coisa sobre como as grandes revoluções, em lugares assim, se fazem mais com o exemplo do que aos gritos – se fazem em silêncio e com inteligência, e sobretudo sem nos esquecermos de que o bem a obter é o esclarecimento do receptor, e não a validação do emissor. Mas achei que pareceria estar a reclamar para mim tais méritos, aliás imerecidos, e calei-me.
Entretanto, aconteceu parecido. A T. veio uns dias de Lisboa, com o marido, e quis que os levássemos à Serreta, a experimentar o Ti Choa. Passava das dez quando um rapaz, fazendo uma festa, se aproximou da nossa mesa. Ofereceu-nos mais cervejas. Pediu desculpa por estar ébrio, disse-me que tudo o que precisasse da Serreta era só falar com ele, quis mandar vir mais cervejas.
Sugeriu hipóteses de nepotismo, estivesse eu interessado em não sei o quê, e eu sorri com bonomia, porque o que ele queria era dar-me o melhor que tinha.
A T. ergueu um dedo:
— Isso não faz sentido nenhum.
E pôs-se a industriá-lo nas matérias do estar em sociedade – exactamente como, dias antes, a M. gostaria de ter feito. O rapaz defendeu-se como pôde, mas não sabia onde se meter. Respondeu enquanto conseguiu, tentou mudar de assunto, procurou o empregado. E ela quase aos gritos:
— Sentido nenhum! Há aí uma grande incoerência!
Até que ele:
— Olha lá, eu não sei quem tu pensas que eu sou, mas eu sou um homem culto. Sou sobrinho do L. P. O amante da minha mãe era arquitecto. Sou um homem culto.
Eu podia estar a inventar, mas tenho testemunhas: um homem fez reverberar pelo espaço a frase “Eu sou um homem culto, o amante da minha mãe era arquitecto.” E, indiferente ao acessório, ali fiquei eu, a pensar em como tantas vezes a ficção se queda aquém da realidade e o desafio do escritor é ser capaz de transformar a mais incrível das realidades numa hipótese plausível.
Vim-me embora calado, ao contrário de quase sempre. E tive esperança de que o Artur, ali caladinho a ouvir-nos com a sua bolonhesa à frente, tenha percebido quem ganhou.