Ser magra com pernas gordas pode não ser feitio, e sim doença

Ainda muito desconhecido, o lipedema afeta uma em cada cinco mulheres e é, com frequência, confundido com outras patologias, como a obesidade. O exercício físico parece não surtir efeito, há dor, impactos na autoestima. Mas há tratamento.

Cláudia Vicente tem a memória perfeita daquele dia, aos 45 anos, quando mergulhou na internet e se cruzou com um artigo que dizia assim: “Se é uma pessoa magra com pernas gordas provavelmente tem lipedema”. Naquele momento, tudo pareceu fazer sentido, depois de décadas a viver com umas pernas que não sentia como suas. “Costumo dizer que só descobri o lipedema com 45 anos, mas ele descobriu-me a mim aos 14. Porque desde a puberdade que as minhas pernas ganharam um tamanho desproporcional em relação ao meu tronco. Parecia uma boneca com dois corpos, da cintura para cima bastante magra e da cintura para baixo muito cheia.” Nem sequer faziam sentido no estilo de vida que Cláudia levava, sempre foi desportista e tinha uma alimentação regrada. É psicóloga, procurou muitas vezes aconselhamento médico, a conclusão era invariavelmente a mesma: “Sempre me disseram que era o meu biótipo corporal, que todas as mulheres da minha família tinham este feitio de corpo, nunca me foi entregue como uma patologia”.

Foi em 2021, depois de um luto familiar, um gatilho de stress que agravou a doença, que encontrou aquele artigo, obstinada que estava por encontrar respostas. Na pesquisa, descobriu também Olivas Menayo, médico especialista em cirurgia plástica, reparadora e estética, que se tem dedicado a esta patologia e que é fundador e diretor do Instituto Português do Lipedema, em Lisboa. Cláudia nem hesitou, marcou consulta. Passado um mês estava a ser operada. Hoje tem 48 anos e ganhou qualidade de vida. “O lipedema é altamente doloroso e, na verdade, achava que toda a gente sentia o mesmo que eu, a dor quando se senta uma criança no colo, a sensação de que carregamos pesos nos tornozelos.” Foi uma viragem completa. “Fiquei com umas pernas fininhas, proporcionais ao meu corpo. No pós-operatório, tive a sensação de me ter encontrado com o meu corpo, de estar pela primeira vez na vida no meu corpo.”

Mas, afinal, o que é o lipedema? É conhecido como a doença das pernas gordas e caracteriza-se por uma desproporcionalidade entre as pernas e o tronco. “Diria que 99% dos casos são mulheres. E são mulheres que são magrinhas, mas que têm as pernas de uma paciente que poderia ser considerada obesa. São as chamadas mulheres de dois corpos”, simplifica o médico Olivas Menayo. O que acontece é que há uma predisposição para a acumulação excessiva e patológica de gordura nas pernas, que causa dor, e que pode ser confundida com outras doenças como a obesidade, o que dificulta o diagnóstico. A doença, crónica e progressiva, foi reconhecida em 2018 pela Organização Mundial de Saúde. “Estas doentes fazem tudo para emagrecer as pernas e nada resulta. E, geralmente, quando pedem ajuda ao médico, como ainda há muito desconhecimento, ficam sem respostas.” Além das pernas pesadas e inchadas, os sintomas passam pela dor, sobretudo à volta do joelho e na barriga da perna, “o que pode ser confundido com insuficiência venosa”, e pela extrema facilidade em ficar com nódoas negras.

Causas? “É uma doença genética, principalmente. Mais de 80% das pacientes têm antecedentes familiares”, aponta Olivas Menayo, que acrescenta que não é uma patologia apenas das pernas, é sistémica, pode afetar outros órgãos como o intestino. “Está muito relacionada com alterações hormonais, com o aumento do estrogénio. A toma de contracetivos, a gravidez, tudo isso pode desencadear o aparecimento, o agravamento dos sintomas ou acelerar a progressão.” Há cinco tipos de lipedema: pode afetar só as coxas, das coxas ao joelho, entre o joelho e o tornozelo, a perna toda e até o braço. E há diferentes estágios de gravidade.

A boa notícia é que, mesmo não havendo cura, há tratamento, a má é que não está disponível no SNS, o que obriga a recorrer ao privado. Pode passar pela abordagem conservadora, que consiste numa dieta muito específica, no uso de meias de compressão, massagens drenantes ou exercício físico (evitando correr ou saltar, para não magoar as articulações do joelho e tornozelo). Ou pela cirurgia, “uma lipoaspiração específica para retirar a gordura”. “Não podemos eliminar toda a gordura de uma perna, mas conseguimos tirar até sete litros de gordura numa paciente de 70 quilos, para diminuir ou parar a evolução da doença”, explica Olivas Menayo.

Estima-se que uma em cada cinco mulheres terá algum grau de lipedema, porém as pacientes passam anos até descobrirem que têm a doença. “O ideal seria fazer o diagnóstico entre os 20 e os 30 anos, antes de uma gravidez, para terem uma vida o mais normal possível. Mas a média de idades do diagnóstico, tristemente, está nos 45 anos”, refere o médico.

Voltemos à história de Cláudia. Sente-se leve, deixou de ter nódoas negras nas pernas por tudo e por nada, já é capaz de vestir uma saia, ir à praia deixou de ser um bicho de sete cabeças. “São coisas tão simples como participar em atividades com os meus filhos, quando antes nem conseguia correr, só fazia natação, porque sentia dor ao bater com os pés no chão.” Só que o caminho na gestão das expectativas da cirurgia, da mudança da imagem que viu toda a vida refletida no espelho foi solitário e, por isso, sendo psicóloga, quis ajudar outras doentes. A especialista em psicoterapia e intervenção sistémica dedicou-se a estudar o lipedema e as questões da imagem corporal e criou uma página de Instagram para partilhar a sua experiência. Acabou por ser convidada a integrar a equipa do Instituto Português do Lipedema. “O lipedema não é só pernas, é autoestima, autoconfiança, é crescer com muita culpa. Ainda hoje, numa consulta, a doente disse-me que toda a sua vida girou em torno do lipedema. E neste percurso há momentos de excitação, outros de sentir o peso de ter uma doença crónica.” Sendo certo que o conhecimento é poder. “O lipedema não vai desaparecer, mas sabermos o que temos e como tratar dá-nos uma sensação de controlo.”

Raquel Ferro conhece bem a sensação. Tem 50 anos, sempre foi magra, o seu peso normal rondava os 50 quilos, mas nunca se arriscava a usar saias ou calções. “Sempre tive a perna muito larga, principalmente o tornozelo e os joelhos, parecia que não pertenciam ali.” Diziam-lhe que era da alimentação, de não fazer desporto, só que Raquel comia de forma equilibrada e desde catraia que faz exercício. Chegou a treinar três vezes por semana sem conseguir resultados. “Depois diziam que era má circulação, que era genético, as minhas tias e avó do lado do meu pai também são assim.”

Comprar calças era um desafio, para servirem nas pernas ficavam largas na cintura. Botas de cano alto nunca lhe serviam. Com a gravidez piorou, teve dois filhos. Até que um dia, estava no provador de uma loja a lamentar-se, quando a funcionária lhe disse que podia ser lipedema. “O que é isso?”, perguntou. Começou a investigar, ao ler sobre o assunto fez o autodiagnóstico. “Afinal não era má circulação, não era não comer bem, não era não fazer desporto. Aquela era a minha doença, tinha a certeza.” Como o tratamento não é comparticipado, teria de investir alguns milhares, marcou consulta reticente. “Será que vai resultar mesmo? Decidi avançar, fiz cirurgia em abril”, conta. Mal acordou, ainda inchada, a diferença já era enorme. “Olhei para as minhas pernas e parecia que não eram minhas. Durante anos tive pernas grossas. Mas não mudei só a nível visual, mudei a nível da mobilidade.” A recuperação foi dura, mas valeu a pena. “Se me tivessem diagnosticado a doença há vinte anos, tinha tido uma vida muito melhor. Seis semanas depois da cirurgia, fui a Londres e andei quilómetros sem parecer que tinha garrafas de litro agarradas às pernas. Sinto-me muito mais confiante, comprei calções, o meu filho tem 14 anos e nunca me tinha visto de calções.”

Raquel está a contar a sua história antes de começar o treino no ginásio, sabe que a doença é crónica, que o segredo agora é manter hábitos saudáveis. Está feliz, a tia seguiu-lhe as pisadas. A psicóloga Cláudia Vicente resume bem o sentimento: “Agora sinto-me em casa no meu corpo”.