
Nunca revelam aos pais que são viciados em tabaco, nem mesmo já crescidos e com filhos, e passam uma vida inteira a encontrar estratégias para manter o segredo. Por respeito, por medo de desiludir, para evitarem o confronto e os sermões ou porque o timing passou. Mas há muitos fatores que podem contribuir para este comportamento.
Margarida Bacelar, hoje com 67 anos, ainda percorria os corredores do liceu quando começou a fumar entre amigos, “para fazer parte do grupo”. “Toda a gente fumava”, rebobina. Um cigarro aqui, outro ali, até que o hábito se entranhou, o vício ganhou terreno e acabou a estender-se pela vida fora. Viveu cerca de 40 anos como fumadora – chegou a deixar durante sete anos, caiu novamente no vício e voltou a largar os maços de tabaco no ano passado. Só que há um detalhe curioso: nunca contou aos pais que fumava, nem mesmo em adulta e já mãe de quatro filhas. E guardou o segredo até os pais falecerem. “Foi uma vida a esconder”, diz. Na verdade, olhando para trás na tentativa de encontrar explicação, o pai também passara a vida a fumar, mas conseguira deixar quando Margarida tinha 25 anos. “Ele era muito rígido e eu sabia que ele não iria gostar. Acho que preferia que ele descobrisse por ele. E a minha mãe também. De vez em quando, ela dizia-me ‘o teu pai deixou de fumar, teve muita força de vontade’, dando a entender que sabia.” Mas ela nunca abriu o jogo, às tantas até já lhe parecia absurdo. Afinal, passou a juventude a esconder, entretanto casou, foi mãe e, chegada a adulta, “já não fazia sentido anunciar”.
No jogo eterno de encobrir o vício, Margarida desdobrava-se em desculpas sempre que, ainda jovem, chegava a casa a cheirar a tabaco. “Desde que o meu pai deixou de fumar, passou a ter mais perceção do cheiro. E eu dizia-lhe ‘estive com fulana tal e ela fuma muito’.” Depois, já casada, de cada vez que ia almoçar ou jantar a casa dos pais, no final da refeição estava “sempre desejosa” de se ir embora. Se a reunião familiar calhava de ser em casa dela, arriscava ir para outra divisão fumar à janela. Durante muitos anos, Margarida não viveu perto dos pais, até que se mudou para a vila de Santa Cruz, em Torres Vedras. “Eles viviam em Santa Cruz, era mais fácil apanharem-me. Se ia a um café, tinha de estar sempre a ver se eles apareciam. Às vezes ia na rua a fumar, via o meu pai e deitava logo o cigarro fora. Era um stress.” Houve até uma altura em que fumou à frente dos pais, em festas ou jantares. “Só nesses contextos, para eles pensarem que seria por graça. Talvez se tenham convencido que eu fumava só de vez em quando. Sei que, no fundo, sabiam, mas deixei sempre a dúvida no ar.” Curiosamente, as filhas nunca esconderam isso dela, uma deixou de fumar recentemente, outra ainda fuma. “É outra geração. Elas têm uma abertura comigo que eu não tinha com o meu pai, era um respeito que lhe tinha.”
Talvez a teoria de Margarida tenha alguma razão de ser. Segundo Cathia Chumbo, psicóloga, “quando esconder dos pais se mantém na idade adulta, isso tem muito a ver com o tipo de relacionamento e de vínculo que se tem”. Passa a explicar. “Quando temos um vínculo pouco seguro com a figura materna ou paterna, há um medo que a imagem que eles têm de nós mude. Porque a imagem de uma pessoa adulta e responsável parece não se coadunar com o ato de fumar.” De acordo com a psicóloga, isto acontece, sobretudo, com pais mais rígidos. “Quando os pais são muito restritivos, acabam por impor aos filhos essa restrição nos comportamentos. Se foram pais altamente castradores, que à mínima coisa te alertavam, te diziam que falhaste, é natural que vás esconder pela vida fora. Aliás, começar a fumar pode até ter sido um mecanismo de escape a essa postura dos pais. Quando são pais mais relaxados, o mais provável é que os filhos não tenham tanta dificuldade na partilha.” Ana Pato, também psicóloga, tende a concordar. “Trata-se muito da perspetiva de não desiludir os pais. Porque a ideia que se tem de um adulto competente não implica vícios.”
Na realidade, este comportamento não é muito diferente do que acontece com outros vícios, tal como constata Pedro Hubert, psicólogo que trabalha na área das adições e diretor do Instituto de Apoio ao Jogador. “Não contam pela vergonha, no sentido de ‘agora vão-me ralhar como se fosse um miúdo?’, mas também pode ser pela negação, algo comum nas adições. É aquela ideia do ‘não tenho problema nenhum’, ‘eu consigo controlar’. Ao não afirmarem o vício perante figuras importantes, como os pais, conseguem evitar reprimendas, relativizar o assunto e continuar a ter o comportamento aditivo sem interferências.” Até porque, como o psicólogo reconhece, por muito que estejamos a falar de adultos, “os pais são sempre uma figura de autoridade e os filhos sabem que, ao contarem, vão estar constantemente a serem massacrados para que deixem o vício”.
Mas há outros fatores em jogo. Ana Pato acredita que o facto de os pais serem ou não fumadores também pode ter influência. “Normalmente, com pais fumadores não é tanto um problema, é mais aceite. Mas com pais não fumadores é uma questão. Mais ainda com pais que deixaram de fumar.” Ainda que também possa haver o reverso da medalha, é o caso de filhos de pais fumadores que, em catraios, os condenavam por fumarem. “Depois, normalmente com a entrada na faculdade, com o stress, as noites, surge o álcool, o tabaco, e tendem a esconder. ‘Então agora vou dizer-lhes que fumo, quando eu era a primeira pessoa a pedir à minha mãe para apagar o cigarro?’ Não partilham para evitar o confronto.” Mais tarde, contar traz uma série de questões a reboque. “‘Fumas? Desde quando?’ E já não é só a questão de fumar, é a questão de não ter partilhado. Como é que se justificam todos os anos para trás? Vamos admitir que durante 20 anos não dissemos que fumávamos?”, questiona.
Estratégias e as mulheres
A propósito disso, Ana Pato dá o exemplo de uma cliente, de 64 anos, que nunca contou aos pais que fumava, “porque sentia como um desrespeito”, era a única fumadora da família. Os próprios filhos dessa cliente cresceram a provocar a mãe, ‘não vais dizer à avó que queres ir fumar?’. E as estratégias para manter o segredo durante décadas multiplicam-se. “Essa minha cliente antes usava pastilhas elásticas, agora tem sempre perfume na mala. Depois é muito comum fumar na casa de banho, sobretudo com estas novas formas de tabaco aquecido e cigarros eletrónicos. Também atar o cabelo enquanto se fuma para o cheiro não se entranhar. São comportamentos padrão entre quem esconde.” Ainda que a psicóloga defenda que “os pais acabam sempre por saber”. “Há comportamentos que se detetam. Seja porque depois das refeições o filho se afasta, vai para a casa de banho, seja porque cheira a tabaco. Só que acabam a delegar a responsabilidade nos filhos, que já são crescidos, e a não abordar o assunto.”
Ainda no que toca aos pais, a psicóloga Cathia Chumbo olha para a questão numa perspetiva mais aprofundada. “Todos temos mecanismos de descontrolo. Uns usam a nicotina, outros têm compulsões alimentares ao final do dia, com chocolates, bolachas. Outros estão viciados no telemóvel. Mas fumar tem um estereótipo muito negativo associado, e claro que não há nada de positivo no ato de fumar.” Vale a pena referir que o número de fumadores em Portugal tem vindo a aumentar. Mas voltemos ao ponto. A somar ao estereótipo negativo, aponta Cathia Chumbo, “há uma tendência, no caso do tabagismo, para simplesmente julgar o ato, para atribuir culpa, sem nunca tentarmos perceber as causas, o que levou alguém a começar a fumar”. “E é isso que os pais também fazem, atribuir-nos a irresponsabilidade. Os filhos sabem que os pais os vão julgar, como se fosse uma coisa de adolescente. Que vão falar na montanha de doenças associadas, como se fosse fácil deixar. Daí esconderem.”
E há um dado que parece ser consensual, o de que o ato de esconder pela vida fora é mais comum nas mulheres. “Ainda estamos longe da igualdade de género. Se me virem a mim e ao meu companheiro de cigarro na mão, mais depressa me vão condenar a mim, porque sou mulher e não me fica bem.” Além disso, há uma tendência, diz Cathia Chumbo, para os pais serem mais benevolentes com filhos homens “em relação a comportamentos que são fuga à norma”. Ana Pato subscreve. “Nos adolescentes, não há grandes diferenças. Mas, chegados a adultos, as mulheres tendem mais a esconder. Continuamos numa sociedade que aceita muito menos uma mulher que fuma do que um homem. Aquela ideia de que o homem até é mais forte se beber e fumar, e de que numa mulher é triste ter vícios.”