Sair da arena das redes por convicção

Ana Faria saiu das redes sociais (Foto: Miguel Pereira)

Há um movimento global de desvinculação dos palcos digitais. O discurso de ódio, a desinformação, a comunicação tóxica, a subversão de valores, a postura dos donos das plataformas, ajudam a explicar o abandono. Em Portugal, por enquanto, a atitude é pouco expressiva. O algoritmo continua omnipresente e a questão volta à superfície. Somos mercadoria ou clientes nesta bolha?

Ana Faria saiu do Instagram, do Facebook e do Threads no fim do ano passado. “A minha decisão fundamentou-se na posição da Meta de associar questões de género, de pessoas LGBT, a doenças mentais.” Com tal postura, não havia volta a dar, não queria ficar num espaço conivente com ideologias discriminatórias, desrespeitadoras dos seus valores. Desativou as contas sem contemplações. “Estamos sujeitos às diretrizes que essas empresas implementam e temos o direito de continuar a usar ou não.”

Ana, de Braga, consultora num call-center, anunciou a saída nas redes e explicou, em privado, ao círculo mais próximo, e a quem lhe perguntou, os motivos. “As narrativas são perigosas e denotam uma regressão em termos de discursos.” Sair é a sua forma de luta. E de preservar a sua saúde mental.

Em janeiro, Miguel Szymanski, jornalista, escritor, comentador da RTP, saiu do X. Em seu entender, o que ali se passa fere princípios e valores elementares, os seus e os da Humanidade. Os discursos de ódio, misóginos e racistas, os confrontos sem pudor, a ressonância dos ideais da extrema-direita, a desinformação, a toxicidade. Por isso, saiu. “Quando o serviço é gratuito, só podemos ser o produto e a mercadoria, não somos os clientes”, repara.

O grau de interferência de Elon Musk, o homem mais rico do Mundo, braço direito de Trump, dono do X, antigo Twitter que comprou em 2022, é tremendo. O homem que desestabiliza uma série de países, que tenta condicionar governos, apoiante da líder da extrema-direita na Alemanha, tem mais de 330 milhões de pessoas na rede. É um poder enorme, sem restrições, sem travões.

Ana Faria, de Braga, saiu das redes sociais da Meta em desacordo com os discursos que desrespeitam os seus valores. E não está arrependida de ter abandonado essas plataformas

“Macron comenta isto e aquilo na rede X, António Costa comenta isto e aquilo na rede X, Montenegro comenta isto e aquilo na rede X, quando a Comissão Europeia está a exigir dados que ele não dá.” Entre o palco e o megafone que o X estende de mão beijada e os seus princípios, Miguel Szymanski tomou a sua decisão. “As pessoas não se apercebem que aquela audiência, para quem falam, é uma bolha cuja dimensão é decidida por quem gere o algoritmo.” “A projeção pessoal é perfeitamente ilusória”, afirma.

O médico Gustavo Carona também saiu do X em janeiro, escreveu um artigo de opinião a falar da rede de Elon Musk e das suas posições neonazis, da ameaça às democracias europeias, apelando a políticos, instituições, meios de comunicação social, toda a gente, a cancelar o X. “Elon Musk está a manobrar uma rede social na sua visão política que não podia ser mais nefasta, o tal vírus da extrema-direita, do neonazismo, que não se lava com água e sabão”, refere. Saiu por uma questão de coerência, está no Instagram e no Facebook porque separa as duas personagens, não coloca Musk e Zuckerberg “no mesmo prato”, como refere.

Estar no X é, para Gustavo Carona, compactuar com o neonazismo, com um negócio. “É um apoio a quem nos quer destruir, é um ataque direto à nossa existência.” Os cliques, as partilhas, as tomadas de posição, podem mudar o Mundo para melhor ou para pior, avisa. “A nossa voz conta.” Estranha, confessa, a “hipocrisia” de gente de vários partidos, sobretudo de esquerda. “As pessoas que criticam ferozmente Elon Musk estão lá a dar-lhe dinheiro.” E aponta o dedo à cobardia. “Portugal, as instituições, os media, os políticos, nunca têm coragem, são sempre os últimos a fazer o que está certo.”

Miguel Szymanski é jornalista, escritor, comentador na RTP, e bastante crítico com as posturas de Elon Musk e a gestão do algoritmo. Saiu do X e está a abandonar o Facebook

O Tribunal de Contas abandonou o X e o Facebook e explicou as suas razões em comunicado. “A plataforma X abandonou a verificação de conteúdos, o que resultou na proliferação de discursos de ódio, sendo patente a utilização plataforma para promover a desinformação”, escreveu. Deixou de utilizar essas redes sociais por não querer ser, justifica, “veículo para uso de plataformas que não cumprem o direito da União Europeia” e passou a comunicar através do seu site institucional.

O Banco de Portugal já tinha tomado a mesma posição, anunciando que deixaria de publicar o que quer que fosse no X, depois de reavaliar a sua estratégia para as redes sociais. A conta ficou para arquivo, criou um novo perfil institucional, e mudou-se para a Bluesky.

A Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa fez o mesmo depois de anunciar, no início de fevereiro, a saída do X. “Não podemos continuar num espaço que contraria os valores fundamentais que regem a nossa missão”, explicou numa nota de imprensa. O Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa fez o mesmo. Lá fora, cerca de 60 universidades alemãs e austríacas fizeram uma declaração conjunta sobre o fecho das suas contas no X, depois de Musk ter declarado apoio à candidata do partido alemão de extrema-direita.

A regulação, o consumo, a liberdade

Miguel Szymanski está a apagar a sua conta de Facebook faseadamente, depois de durante 15 anos ter sido o seu “principal retiro de escrita, de raiva e reflexão.” No seu primeiro post, escrito a 8 de janeiro de 2010, terminou-o com a seguinte frase: “Esta aplicação ou funciona com telepatia sem fios ou é uma fraude com algum tipo de agenda escondida.” Teve um like.

Entretanto, criou um blogue que, em duas semanas, registou cerca de 1200 assinantes. É nessa nova página que assina o editorial “Resistir é preciso”. “Este mau feitio já vem de trás: em outubro escrevi uma carta a terminar a minha colaboração de mais de dez anos como correspondente da televisão alemã Welt, um protesto quase silencioso, mas sentido, contra o branqueamento sistemático dos crimes de guerra e genocídio em curso”, escreveu, referindo-se à “manipulação” sobre o que está a acontecer em Gaza e o “apoio ao terrorismo” de Israel. E acrescenta: “Também não tenho paciência para editoriais que vêm ‘colmatar lacunas’. Não colmato nada. Corro o risco de escrever só para amigas e amigos, mas isso aumenta a sensação de liberdade.” Liberdade é, de facto, o que lhe importa, o que lhe interessa.

Há um movimento mundial de desvinculação das redes, sobretudo depois da eleição de Trump. A rede X tem vindo a ser acusada de manipulação política, disseminação de teorias antissemitas e de extrema-direita. Nos últimos meses, vários jornais, como o francês Le Monde, o britânico The Guardian, e o espanhol La Vanguardia, abandonaram o X. The Guardian, que tinha cerca de 27 milhões de seguidores em várias contas nessa rede, acusou a plataforma de “comunicação tóxica” e Musk de “influenciar o discurso político.” La Vanguardia falou de uma “rede de desinformação” desde que deixou de ser Twitter, passando a ser uma “caixa de ressonância de teorias de conspiração e desinformação.” O jornal espanhol não esquece as “mentiras” espalhadas sobre a depressão Dana, que inundou Valência no ano passado. Apple, Disney, IBM, Paramount já não fazem publicidade no X.

Gustavo Carona, médico, lançou um apelo público para que políticos, meios de comunicação social, instituições, e cidadãos, deixem o X, rede que, em sua opinião, alimenta as narrativas da extrema-direita e do neonazismo

Sair das redes sociais é ativismo, observa Emília Araújo, socióloga, professora do departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. As críticas à toxicidade do X são conhecidas, o apoio direto de Musk à candidata da extrema-direita da Alemanha agitou ainda mais as águas, a disseminação de conteúdos ideológicos colados a partidos mais radicais é uma evidência, o abandono de universidades, instituições que produzem conhecimento, tem tido exposição pública. “Estes comportamentos de saída por não identificação com os valores democráticos, de Estado de Direito, de dignidade humana, de liberdade, são movimentos de resistência.”

O abandono das redes acontece e as plataformas continuam. “Há uma reconfiguração e surgimento de outras redes. Há sempre. A sociedade digital vive das redes. O que se passa na sociedade, passa-se nas redes.” Emília Araújo recorda uma frase que ouviu. “O sangue económico passa pelas redes sociais.” A realidade demonstra-o. “São espaços de expressão, de comércio, de consumo, de alimento para as empresas.”

A tecnologia pula e avança e as preocupações aumentam. “As implicações da inteligência artificial vão desembocar no uso das redes sociais, o espaço por onde passa toda a informação relacionada com o consumo”, constata a socióloga. O debate tem girado em torno de uma maior literacia digital, de um consumo mais consciente e crítico das aplicações. “Para tentar destrinçar o que é completamente falso”, sublinha Emília Araújo, lembrando a opacidade das redes e os mecanismos de regulação, de proteção, tão importantes nesse mundo.

“Sinto necessidade de fazer um pouco mais do que sair do X”, admite Miguel Szymanski. Entre amigos, fala-se numa intervenção cívica do que se pode fazer nestes tempos de mudança. “Se não são as redes sociais a explicar a ascensão da extrema-direita, não sei o que é”, diz, lembrando que “o próprio Elon Musk diz ao que vem.” Neste momento, a inteligência artificial preocupa-o. “Vai complicar muito mais as coisas, tornar tudo mais perigoso e com uma projeção muito maior.”

Ana Faria não ficou espantada com as decisões de Mark Zuckerberg. “Os discursos e o pensamento político do dono da Meta não me surpreendem, muito alinhados às políticas da atualidade de Trump, de segregar as minorias, tornar invisíveis pessoas que fazem parte da sociedade. Era expetável que isso viesse a acontecer, tornar estes discursos aceitáveis, normalizá-los.” Não algo novo, não é de agora, comenta. “Temos vários exemplos na História. Hitler começou, aos poucos, a fazer uma lavagem cerebral que segregava as minorias, os homossexuais, os judeus, as mulheres. Não temos um Hitler, mas temos outros políticos e outras pessoas que têm muito poder na nossa vida do dia a dia.”

Ana não se arrepende, não sente falta das aplicações. Está melhor assim e mantém-se informada por outros meios. “Há muitas formas de comunicar fora das redes sociais.”