Rui Reininho. Os sete pecados capitais do rei da pop

Chega à hora marcada, pontual, como gosta de ser. A conversa acontece numa sala do belo edifício do Ateneu Comercial do Porto, na baixa do Porto, perto de onde viveu e cresceu. Num sofá de couro escuro, num lusco-fusco acidental quase cinematográfico, fala-nos dos seus pecadilhos ou quedas, como, por vezes, lhes chama, numa quase viagem pelos círculos de Dante, sem bater no fundo do fundo do inferno. Há muito tempo que abdicou da culpa judaico-cristã, confessa.

A tarde corre devagar, demora-se na memória, espraia-se nas palavras. O músico, cantor, poeta, espreita o passado. Os santinhos da catequese. A infância numa família burguesa. As sandes de marmelada que comia em casa dos colegas da escola nos bairros pobres de Campanhã. As visitas aos matadouros, o cheiro do sangue e da morte. A juventude de brinco na orelha, cabelão pelos ombros, socas holandesas, a destoar na paisagem cinzenta. As viagens para fugir de uma cidade conservadora. Os vícios, as paixões, as idiossincrasias. Os camarins, o encantamento, o álcool, a inveja e o ciúme. É um homem poupado em meios, com um certo pânico das multidões, intolerante à violência e à arrogância da prepotência. Sem falsas modéstias ou orgulhos desmesurados. Deixam-lhe livros de poesia na caixa do correio, está a escrever um libreto e a burilar um romance. Não gosta de sardinhas nem de tomate, lemos no prefácio da reedição do seu “Sífilis versus Bilitis”. É-lhe conhecido o sentido de humor e uma fina ironia de quem sabe ser lido nas entrelinhas. Há seis meses que está no Ramadão ou ramadinho como batiza esse seu período abstémio. Continua a gostar dos pássaros que passam, que voam nos céus de Leça. Hoje faz 70 anos em cima do palco. E edita um disco que gravou com a Orquestra de Jazz de Matosinhos. O seu livro “Soñetos”, obra completa das suas letras e poemas, marcantes e inesquecíveis do cancioneiro português, estará à venda no fim de março.

Avareza
Os saldos e o prazer de não dar dinheiro ao grande capital

Nunca foi um consumidor compulsivo ou destrambelhado, o desequilíbrio não é assim tanto, garante. “Sou associado a uma certa avareza judaico-cristã, com certeza, dos poupados e remediados desta vida.” Há dias, levou com a boca dos compinchas de estrada. “Os meus capangas disseram: ‘este gajo é tão forreta que vai comemorar os anos em palco só para não pagar o jantar a ninguém’.” Ri-se ao lembrar. Hoje, 28 de fevereiro, faz 70 anos e tem concerto na Culturgest, em Lisboa. Neste dia, lança o disco “Rui Reininho & Orquestra de Jazz de Matosinhos”, edição digital e em vinil, registo ao vivo.

Há anos que compra peças em segunda mão, os vintages desta vida, roupas, discos. “Vendíamos coisas na velha feira da Vandoma, quando era ao pé da Sé, ao sábado de manhã, fazíamos umas massas e depois ia comer umas tripas.” Massas para viajar também, com muito pouco, quase sem dinheiro. “Passei muita fominha, mas não era a fazer de pobre, era porque havia prioridades, aquela tentação de trazer dez vinis que não havia cá.”

Apreciador da época baixa de preços, chegou a pedir uma t-shirt das promoções, com a palavra Saldos estampada, para usar com um fato dourado nas fotografias de imprensa, nas festas no Lux Frágil. É poupado em certas circunstâncias. Chega a ter o carro encostado durante dias, prefere o comboio para viajar – “Quando necessito fazer, como lhe hei de chamar, branqueamento da capital (não é de capital).” Não usa ar condicionado. “É o pior para as tosses.”

É singelo na alimentação, anda a cortar nas carnes vermelhas, tem pena de não ter a coragem dos vegetarianos. Poupa eletricidade, máquinas ligadas durante o dia para aproveitar a luz do sol. “É um prazer não estar a dar dinheiro ao grande capital, como dizia o camarada”, refere, imitando-lhe o tom de voz. Evita descargas no autoclismo. “Se passo o dia em casa, vou fazer o chamado xixi no meio das plantas, num sítio que tenho para não queimar o resto por causa do PH.”

Ainda tem roupinha de palco de há 40 e tal anos, uma camisa de folhos, a camisinha verde dos primeiros concertos dos GNR. “Os casaquinhos, enquanto forem servindo, às vezes um bocado mais apertados e tal.” Sapatos também, alguns que comprou na sapataria Pessoa, nos Poveiros, a um senhor que fazia calçado por medida. “Se morrer em terra, tenho lá o sapato que acho que é engraçado, mas depois pedi para os tirarem, queimar com aquilo é muito chato.” Avareza, com certeza, com conta e medida. “Temos de ser avaros em meios, não é? Sou relativamente poupado, de facto.”

Gula
Singelo no comer, guloso no beber. O álcool e a vertigem

Habitou-se a estar no olho do furacão com todas as solicitações ao redor. Camarins, longas esperas, vida de estrada e de hotéis, acesso facilitado, garrafas sempre à mão. “A minha gula, o meu afã, é mais aquela dipsomania, era mais o beber do que o comer, sempre bebi mais do que comi, embora nunca me assumi como alcoólico”, diz. “Os maiores prazeres que tive foi, de facto, na companhia e na bebida.” A bebida era a vertigem, convívio também. Não esquece a frase que ouviu, certo dia, de um companheiro da música decalcada de algum pensador. “Prefiro ser um bêbado conhecido que um alcoólico anónimo.”

Fumou durante 20 anos, com a paternidade deixou o tabaco. “Não podia ter um bebé na mão e um cigarro na boca.” Aprendeu a abdicar. “A certa altura, não se filtra e é um filtro muito velhinho.” Recuperar do álcool tornou-se complicado. “Comecei há pouco tempo o meu último Ramadão, que vai em quase seis meses, o meu ramadinho, como digo, que é absolutamente abstémio.” Até para experimentar os espetáculos sem nada, apenas a água e a chás. “Os vícios são muito perigosos e cíclicos. Uma comidinha que depois leva a um café, depois puxa um cigarro a seguir e o digestivo, e já vão quatro e já vai uma conta.” Lá está o avaro a falar.

A gula dos outros ofende-o. A gula política, o afã de querer mais. Não entende essa ânsia, a sua gula é outra. “Tive sempre um apetite por outras coisas que não são pagas.” Há dias, pensou nisso. “Há uma senhora que está ao pé do farol de Leça, talvez há mais de 30 anos. A senhora está velhíssima, deve ter a minha idade. É uma profissional e os camionistas param e eu penso é esquisito, nunca me passou pela cabeça ali o ato da prostituição, não quer dizer que não tenha tido curiosidade no sítio em que ela é mais omnipresente.” Como no Brasil, por exemplo. “Era fantástico, os sítios em que íamos, sítios populares, tinha muita gente a atacar, nomeadamente o que, na altura, se chamava os travestis.” No Oriente, espreitou os aquários. “O que é uma coisa um bocado chocante em termos humanos. É uma espécie de alterne aquático, como gosto muito de água, fui ver como funcionava.”

As foices do pecado não o perturbam. “Uma das coisas que me fez melhor foi ter conseguido abdicar da tal culpa judaico-cristã.” Nas conversas teológicas que tem com amigos, sobretudo com os batistas, dizem-lhe: “Rui, a culpa é inegociável, tens de a sentir”. Acha graça. Teve educação religiosa, andou pela Juventude Estudante Católica. “Era muito bom na catequese, tinha imensos santinhos.” Não fez a comunhão solene, negociou com a mãe, se não quisesse festa, recebia uma prenda mais jeitosa. “A minha fé foi vendida.”

Inveja
O magnetismo, o erotismo, o ciúme de coisas banais

Inveja, ciúme, tem dificuldade em distingui-las, talvez seja cobiça sem pecado mortal. Mais ciúme do que inveja, vendo bem, e uma observação a propósito da palavra, do pecadilho considerado capital, eventualmente mortal. “É a última palavra d’‘Os Lusíadas’, o que é extraordinário. Agora as pessoas estão todas a descobrir que a última palavra que Camões escreve é ‘enveja’ com ‘e’”. Inveja. “É uma atividade portuguesa, um desporto nacional”, comenta. Chegaram a inventar-lhe doenças. “Tive sida não sei quantas vezes.”

Tem ciúmes de pintores, a arte do desenho não lhe calha bem, e de outras coisas mais, banais ou talvez não. “Tinha ciúmes de coisas tão interessantes ou tão desinteressantes ou tão factuais como estou aqui num espetáculo e esta gente vai namorar e agora estão concentrados em mim e depois eu vou para um hotel e vou ficar sozinho. Tenho ciúmes destas pessoas, como eles e elas podem andar uns com os outros, e deixam-me aqui triste e abandonado.”

A vida de artista é dada a estas coisas. “Sempre tive muito cuidado com o chamado encantamento, há ali um período em que as pessoas estão em transe e é muito fácil entrar no camarim e dar a volta às menores, aos menores. Notei a certa altura, parecia que tinha um magnetismo relativamente a adolescentes, que viam em mim uma figura que não era paternal, e havia um certo erotismo.” Aliás, lembra, das poucas vezes que foi apalpado em público, olhou para trás, eram miúdos. “E eu achava esquisito, um miúdo a apalpar-me o rabo, no Swing, um adolescente.”

Sente mais coisas, conta. “Sempre tive de espanejar à minha volta porque notei que, a certa altura, era um target por ser bastante dado com as pessoas. Criaturas que se aproximam do meu meio, de maneira um bocadinho abusiva, para se aproximarem das pessoas com quem estou com quem eu vivo, uma tentativa de compartilhar.” Nessas coisas, avisa, é higiénico. Ou ético, de perceber as consequências dos flirts e das aventuras de uma noite.

O que a sua moral não contempla é abuso de poder, violência, estupro. “É repugnante e que conheço nas mais altas figuras do Estado e da sociedade.” Não há nomes. “Guardo um certo rancor aos juízes pela maneira como parece que decidem. Aliás, a única querela que tive, ia-me lixando, foi porque quase afirmei ‘eu não reconheço ascendência a uma pessoa que anda mais quatro anos na faculdade do que eu, e noutra área, e está-me a julgar só por isso. Que experiência de vida é que tem, ou de morte, ou de bondade ou de proximidade? Se calhar sou muito melhor exemplo para a sociedade do que vossa excelência’.”

Conclui que tem vindo a curar-se da inveja e do ciúme.

Ira
Os passarinhos, os touros de morte. Sangue, nunca mais

Conta a história com os sons associados. Teria uns 10, 12 anos. Arma em punho, contente da vida, sai de casa de campo dos pais, encantado com a espingarda, faz mira, tiro ao alvo, atira em latas, pim-pim-pim, numa manhã mata quatro passarinhos, que bela pontaria. Volta da caça, mostra os passarinhos à mãe, fala de arroz com passarada para o almoço. Ai sim? A mãe dá-lhe a lição, coitadinhos dos bichos. “Talvez o primeiro arrependimento da minha vida, olhar para aqueles pequenos cadáveres e pensar o que é que eu fiz. Como já prescreveu, não me importo de confessar, mas matei quatro passarinhos.”

O pai trabalhava numa companhia de seguros, na Royal Exchange, na Rua de Sá da Bandeira. É a sua rua favorita. “Só falta ver o super-homem a viajar entre os prédios antigos.” A mãe trabalhava na Fernandes Tomás, no grémio das carnes, era secretária, tratava da contabilidade, contratava os agricultores que vinham ao Porto vender cabeças de gado. Rui ia ao matadouro quase todas as semanas. Um superior hierárquico da mãe, que simpatizava consigo, levava-o nas voltas pelos talhos, às feiras de animais. “Tinha pesadelos com as vacas naqueles carris, os corpos, aquele cheiro a morte. Durante anos, foi inesquecível o cheiro a animal morto. Sempre houve muita carne, muito sangue, a entrar em casa.”

Num mundo paralelo, coloca-se numa corrida de touros em Pamplona a sério, a verdadeira afición, uma tarde quente, à espanhola. Tudo mudou, uma parte de si morreu naqueles instantes. Sangue, nunca mais. Mudou de barricada, não vai na conversa de que pegar um touro é uma grande coragem, é um número de circo, em seu entender. Com gestos imita o que lhe explicaram. “Aquilo tem de entrar na espinal medula, com uma ligeira torção, e o tipo fica ali a pingar.” Esta também é a sua ira. “A tourada não começa quando largam o touro e a pega é feita. O touro é pegado, picado, massacrado, consumido, então quando o gajo já está ‘tirem-me daqui’, aparecem uns muchachos.”

A angústia do animal, o sofrimento atroz, o olhar do bicho, o destino de um animal que anda livremente nos campos. “E dizem que o touro bravo, se não for para a tourada, não serve para nada, perguntem às vacas. A arrogância do ser humano, não serve para nada se não for para lhe dar cacetadas em cima, torturá-lo e massacrá-lo.” Fala do assunto quando acha que deve falar, alerta quando acha que tem de alertar. “Parabéns, Viana, a primeira cidade portuguesa a abolir a tourada. Póvoa, também felicito-os sempre que estou lá. Espinho, então a praça desapareceu, parabéns Espinho.” Tem sido insultado por isso e não se importa. Em casa, tem uma cadela e uma gata.

Luxúria
Livros, filmes, discos. As artes e os frutos proibidos

Grandes vícios, grandes prazeres. No pecado da luxúria, nessa lascívia carnal e espiritual, cabem várias artes. O culto começou cedo, muito antes de entrar nos GNR (Grupo Novo Rock) em 1981. “Houve sempre muita livralhada lá em casa, comecei a ler livros assim um bocadinho picantes antes do tempo.” Na música, não era diferente. Juntou umas massas com um amigo para comprar, a meias, o “Je t’aime moi non plus”, hino sexual de 1969, Jane Birkin e Serge Gainsbourg eram vendidos por baixo da mesa, não estavam no escaparate, na Rua de 31 de Janeiro. “Éramos miúdos, 15, 16 anos, havia duas discotecas e havia um hábito muito engraçado, que noutro dia vi num filme italiano, íamos ouvir as músicas para os gabinetes.” Ouvir antes de comprar. Aproveitar sem gastar.

Viajava e voltava com as mochilas pesadas de vinis. Trazia discos proibidos, Sérgio Godinho, Zeca Afonso. “Viajar era muito importante para mim. Na minha adolescência, o Porto era muito pesado, muito conservador, muito chatinho, tirando a vida do café, das tertúlias. A Dona Urraca na Foz era mesmo fozeira e nós éramos freaks e não entrávamos com facilidade, com o cabelão e tal. Eram as meninas más das boas famílias que normalmente nos levavam ali.”

O Porto tinha várias camadas. “Antes da chamada droga descer ao povo – coitados, os trolhas não sabiam o que aquilo era, os ácidos, heroínas e cocaínas -, era um Porto pobre.” Convivia bem com o Porto do operariado, a vida nas escolas públicas dava-lhe traquejo. “O pessoal de São Victor era da pesada mesmo, com quem me dava bastante, e o pessoal de Campanhã, às vezes, fazia raides no Campo 24 de Agosto, tínhamos de ter cuidado, tínhamos bicicletas e bolas, e eles com aquele ar, mas eram uns porreiros.” Sentia curiosidade por esse Porto simples, circulava pela zona operária de Campanhã. “Eu adorava ir à ilha porque era diferente lá de casa, a marmelada era diferente, comiam muitos pães, barras de queijo da Cáritas. Dava para todos, o que era simpático, lanchava com eles, o galão era muito aguado.” O contraponto com a vida de filho único.

Agora, na caixa de correio, além dos avisos do IRS e dos pagamentos por conta, encontra livros de poesia. Abre-os em qualquer página, não respeita a ordem das páginas. “O livro, o objeto, em si, acho muito respeitável, o facto de poder pegar nele várias vezes ao longo da vida, que é o que me acontece com os mais antigos, Boris Vian, José Luis Borges, que me abriram para o onírico, para sonhar de outra maneira, que isto não era assim tão limitado.” Há os contemporâneos, Mexia e Valter Hugo Mãe, gosta de ouvir a opinião deles. “Não conheço muitos génios na minha vida, mas alguns têm mesmo jeito para fazer o que fazem.”

Preguiça
A solidão, a mesa do canto, um bocadito antissocial

Enalteceu-a numa canção com o sugestivo nome “Viva a preguiça”. Pecado? Parece que sim. Não é aquela preguiça pecaminosa do desleixo ou falta de esmero. É outra estirpe. “Preguiça de sair, sou um bocadito antissocial, não faço vida de café há anos.” Mesmo na juventude, fazia raides, escolhas seletivas de sítios, onde ir e onde estar. Era do grupo dos excêntricos, ave rara na baixa do Porto, cabelão pelos ombros, brinco com uma pena, socas holandesas, no percurso Belas Artes, Majestic, Piolho. “Éramos os freaks, o meu grupo era dos anarcas, depois começaram a aparecer os punks.”

Evita espaços abertos, muita gente à volta. “Tenho um certo pânico das multidões. Como costumo dizer: ‘sempre, sempre, ao lado do povo, mas raramente no meio dele’.” Não gosta de festivais de música, aquela pressão, aquela massa humana em bando. Em cima do palco, é outra conversa, outro habitat, outra música. Aí sente-se bem.

A internet apresenta-o como figura pública sem lhe desvendar uma certa timidez. “Não sou nada de entrar numa sala e gostar que as pessoas me reconheçam, prefiro a mesa do canto. Não há um sítio onde as pessoas se sentem seguras.” Com o tempo, tornou-se insuportável, confessa, por causa dos autógrafos e das fotografias. “Digo, na brincadeira, quando me perguntam ‘posso tirar uma fotografia?’ Ó pá, não tirem fotografias que a minha mulher mata-me, acha que fui a um velório de um amigo.” Mentira piedosa, admite, nessa sua vontade que quer respeitada. “As pessoas estão muito a filmar umas às outras, a ver o que a pessoa bebe, se bebe, se come, se não come”.

Gosta, por exemplo, de ir ao Lusitano, no Porto. “Não é um sítio agressivo, há ali um segredo por trás da ida de muita gente”. Lembra-se, entretanto, de um senhor que ia ao Swing com umas raparigas, acompanhantes, no seu Rolls-Royce. “Era muito simpático. Às vezes, convidava-me para uma mesa, estavam a beber champa, champa mesmo, francês.” Há dias, queixou-se da música muito alta e muito forte num bar. “É sintoma de uma pessoa ser velhinha. Estava debaixo de uma coluna, as pessoas falavam e eu não ouvia, quando a aparelhagem não é muito boa também sou sensível. Os subgraves é para fazer sede, é para fazer beber”, avisa.

Ligeiramente antissocial, mas não bicho do mato, cultiva o low profile. Vai às compras e passeia o cão nas ruas de Leça da Palmeira, onde mora há 26 anos. Agora prefere ir a casa das pessoas. “Nos momentos mais tensos vou até à Galiza, que é uma maravilha. Uma pessoa está ali, ninguém me chateia, alguns curiosamente reconhecem, interessam-se bastante por nós, conhecem o Zeca de fio a pavio.”

Orgulho
“És o maior, pá. És um de nós, pá.” O sabor dos elogios

É o orgulho da ligação à cidade, de pertencer à fauna. “São aqueles elogios espontâneos que gosto de ouvir subindo ali à Ribeira, apanhar aquele pessoal. ‘És o maior, pá. És um de nós, pá’. Gosto, sinto-me bem com a identificação. Também sempre gostei de histórias de gangsters, de bandidos, há aqui uns bons romances, toda a gente sabe segredos uns dos outros e é interessante.” É um homem do Porto. Pode o orgulho ser a génese de todo o mal? Não parece.

Aprendeu a nadar nas Antas, ia à bola com o pai, com o tio e primos, pela Fernão de Magalhães acima até ao antigo campo, com os cavalos da GNR com palas nos olhos. É do F. C. Porto e deixou de ir ao estádio. Por várias razões. “Deixei de ir à bola porque sou um bocado mal comportado, não gosto de ir para os VIP porque peguei-me com um senhor, uma figura até conhecida da política, que dizia ‘não há justiça’ e eu ‘se queres justiça vais a tribunal e mesmo assim duvido’.” Discutiram, pois claro.

Não vai ao Dragão também por uma questão de comodismo. “Tenho uma certa zanga com o futebol por causa da hora estúpida.” Muitas vezes, é incompatível com a agenda. É complicado quando calha dia de jogo em noite de concerto. “Vou para cima do palco e ainda falta um quarto de hora, o que me irrita, e tenho de me abstrair, tenho de perguntar aos roadies, e é uma chatice. Empataram e eu fosgasse e agora tenho de entrar no espírito da canção, que caneco. Como é que os gajos empataram?”

Esse orgulho ninguém lhe tira. No ano passado, no aniversário dos 69 anos, os amigos ofereceram-lhe uma camisola do seu clube com o número e “Rei Niño” nas costas. “Esta já não há, este ano é cor de laranja.” Também tem uma camisola do Benfica, assinada por todos os jogadores, oferecida pelo amigo Seara Cardoso, oferecida na festa dos 60 anos, comemorados no salão nobre do Ateneu.

A conversa vai longa, os pecados desaguam na sua vida, os crimes já prescreveram, a certa altura, lembra-se de uma frase sua, antiga, para falar destes tempos estranhos. “O pior do século XX foi o nazifascismo e as calças à boca de sino e agora gosto de calças à boca de sino.” Passeia-se pelo passado e pelo presente nesta conversa no Ateneu, frequentado pelo pai. “Bebia aqui o seu vinho do Porto, jogava ali um bilhar, um senhor muito bem vestido, com um fato de três peças, lencinho sempre dobrado que parecia um barquinho, chapéu ao lado. Ensinou-me coisas engraçadas e bonitas, por exemplo, que as coisas aparentemente mais caras não o eram.” Como os fatos de alfaiate, bem feitos, que duram a vida toda. Que assentam bem e não ficam torcidos.