Documentários e podcasts sobre crimes reais estão em alta e - nos EUA, sobretudo - há já vários casos de processos judiciais reabertos e sentenças revistas. Em Portugal, o panorama é bem distinto.
Numa mansão idílica de Beverly Hills, dois irmãos, Lyle e Erik Menendez, de 21 e 18 anos, assassinam brutalmente os pais , disparam seis vezes contra o pai, José, dez contra a mãe, Kitty. Tudo acontece no verão de 1989, o caso arrasta-se na Justiça durante anos, em 1996 acabam condenados a prisão perpétua. Para a sentença, contribui a perceção generalizada de que não passavam de miúdos mimados, que atiraram sobre os pais pela sede de ficar com a herança. Lyle e Erik ainda alegaram ter sido vítimas de abuso sexual por parte do pai, mas a acusação caiu em saco roto. No entanto, o caso não morreu ali e voltou à tona nos últimos anos, com particular veemência. A “culpa” é de uma série de documentários e podcasts que têm surgido sobre o tema, alguns com novas provas e até declarações dos próprios, a partir da Donovan Correctional Facility, onde cumprem a pena. À boleia destas produções, um movimento “pro-Menendez” ganhou lastro nas redes, em particular no TikTok, com a partilha de vídeos que salientam o trauma dos abusos e pedem a libertação de ambos.
Ninguém questiona que tenham cometido o crime. Mas insiste-se que agiram em legítima defesa e que a pena então aplicada foi desajustada. À boleia da febre gerada em torno do caso, os advogados dos irmãos entregaram no Tribunal Superior de Los Angeles (LA) novas provas, e pediram a revisão da sentença, para que Lyle e Erik possam sair em liberdade, após 35 anos atrás das grades. A defesa obteve uma primeira vitória, dado que, em novembro passado, o então promotor distrital de LA, George Gascón, recomendou a revisão da sentença. No entanto, a eleição de um novo promotor, Nathan Hochman, levou a um adiamento da decisão, para 30 de janeiro. É, por isso, prematuro afirmar que os irmãos Menendez saberão, por fim, o que é respirar em liberdade. O que não oferece dúvidas é que a vaga de produções sobre o tema, e o frenesim mediático subsequente, pressionaram a Justiça americana, no sentido de voltar a olhar para o caso.
E não foi a primeira vez que aconteceu. Com o boom do streaming e dos podcasts, tem havido vários exemplos. Aconteceu com “Serial”, um podcast de 2014 que foi um sucesso estrondoso e de alguma forma deu o mote para uma nova vaga de interesse pelo “true crime” (lá iremos). A produção abordou o caso de Adnan Syed, preso desde 2000 pelo homicídio da então namorada Hae Min Lee, e apresentou provas convincentes de que Adnan não tinha sido o autor do crime. O resultado foi uma onda tal que, em 2016, Syed teve direito a um novo julgamento, tendo sido ilibado de todas as acusações em 2022. No entanto, em 2023, o Supremo Tribunal de Maryland restabeleceu a condenação, fazendo o caso voltar a um tribunal inferior, para nova audiência.
Um outro exemplo famoso é o da série da Netflix “Making a Murderer”, que em 2015 abordou o caso de Steven Avery e do sobrinho, Brendan Dassey, condenados pela morte de Theresa Halbach. Na sequência das provas apresentadas no programa, um juiz federal reverteu a condenação de Brendan, por considerar que a sua confissão aconteceu sob coação. Porém, os procuradores recorreram da decisão e o Tribunal de Apelações dos EUA acabou por admitir que a confissão era legal. E ainda há o caso de “Your Own Backyard”, outro podcast, este de 2019, sobre a morte de Kristin Smart, estudante desaparecida em 2002, quando voltava a casa após uma festa. O podcast deu origem a uma campanha para que fossem partilhadas novas informações sobre o desaparecimento da jovem e a Polícia acabou por encontrar vestígios do corpo no quintal do pai de um suposto amigo. Em 2023, Paul Flores, o “amigo”, foi condenado a 25 anos de prisão. Mas há vários outros exemplos que poderíamos dar.
Nelson Tereso, advogado luso-americano e autor do livro “Direito Penal Comparado – Estados Unidos versus Portugal”, vê algo de profícuo no fenómeno. “Tudo o que contribua para o esclarecimento da verdade e que possa ajudar a inocentar pessoas inocentes é positivo”, considera. Aponta ainda que nos EUA “há muitos erros judiciais”. “Seja porque a investigação é mal feita, porque os defensores públicos não fazem o seu trabalho, porque a Polícia não disponibiliza ao processo peças essenciais da investigação, a verdade é que há uma série de erros.” O advogado lembra ainda que o sistema penal americano “está muito ligado à política”. “Em muitos estados, o procurador distrital é eleito e portanto quer o voto popular . Daí que, por vezes, haja pessoas condenadas com provas circunstanciais. Como se quer apresentar trabalho feito, à primeira conclusão acusa-se e condena-se.” Nelson destaca também o papel crucial de organizações não-governamentais como a “Innocence Project” e a “Witness to Innocence”, que “têm contribuído muito para a reapreciação de casos mal julgados.”
Carlos Pinto de Abreu, advogado especialista em Direito Criminal, também não olha para o fenómeno com surpresa. “As investigações criminais são feitas por humanos, pelo que necessariamente estão sujeitas a possíveis erros, pré-juízos e a enganos. Pode ocorrer uma investigação mal conduzida, seja dolosamente, seja por negligência, pode até haver uma investigação bem conduzida mas insuficiente. Nem sequer tem de haver um erro humano, às vezes é preciso tempo para que as testemunhas ganhem coragem para dizer a verdade. Há tantas variáveis que não podemos ficar surpreendidos por se descobrirem erros a posteriori.” De resto, encara com normalidade a possibilidade de as provas que surgem no decorrer de um processo resultarem de uma investigação jornalística ou privada, algo que, sublinha, “não é novo”. Deixa, contudo, um alerta: “Se os profissionais responsáveis por julgar estes casos não tiverem a devida independência, é um fenómeno que se pode tornar perigoso, porque não pode haver uma Justiça a reboque do mediatismo. O que não quer dizer que as investigações privadas e jornalísticas não possam servir de ponto de partida para investigações criminais”.
O caso português e a “infalibilidade”
Já Sofia Pinto Coelho, jornalista da SIC que ao longo da carreira tem trabalhado temas de Justiça e a questão do erro judicial em particular, entende que “toda a parte da reanálise de condenações que suscitam dúvidas é uma das coisas ótimas do tempo em que vivemos”. “É uma prova da vitalidade do sistema judicial. Quando o sistema está suficientemente seguro ou maduro para admitir que pode haver erros é extraordinário. Acaba até por transmitir mais confiança às pessoas, que é um pouco o contrário do que acontece em Portugal, em que vivemos sob o dogma da infalibilidade. Já se admite que há erros médicos involuntários, mas ainda não conseguimos encarar que há erros no sistema judicial. E que a população fica melhor servida se, em vez de se atirar areia para os olhos, se admitir. Por vezes, há provas gritantes simplesmente ignoradas.”
A jornalista recorda um caso particularmente “chocante” que tratou no programa “A Prova” (SIC), do guineense Andreany Vaz. O caso envolve um homicídio em Mem Martins (Sintra), em que foi baleado outro guineense. “Como ele era muito amigo de um dos envolvidos e estava a dormir, logo não tinha álibi, e como duas testemunhas oculares disseram que tinha sido ele, foi condenado a 12 anos de prisão, apesar de nenhum dos envolvidos dizer que era ele. Sendo que há vários estudos já feitos que demonstram que a principal causa dos erros judiciais são as testemunhas oculares. Mesmo assim, a prova testemunhal continua a ser a rainha das provas. A memória é considerada uma espécie de DVD, quando, na verdade, é o oposto. Quanto mais tempo passa ou mais coisas lemos ou vemos, mais contaminada fica.” Ora, no tal trabalho feito por Sofia Pinto Coelho para o programa “A Prova”, um dos elementos do grupo acabou por confessar o crime. Mas, por não ser oficial, o vídeo não foi admitido como prova. Nisto, ao fim de dois anos de cadeia, Andreany foi libertado, por excesso de prisão preventiva. Sem esperança na Justiça, fugiu para a Guiné. A sentença nunca foi revista.
Num outro caso, no âmbito da série “Condenados”, Sofia Pinto Coelho investigou a história de Éder Fortes, “um caso gritante de um mais que provável erro judicial, de um miúdo que tinha sido preso por roubar um telemóvel no Cacém e que até tinha um álibi”. Só que na linha de reconhecimento, realizada numa esquadra da PSP, Éder, na altura com 18 anos, foi posto ao lado de um segurança fardado e de um homem de 40 anos. E uma das vítimas garantiu que tinha sido ele. Vai daí, o tribunal ignorou o álibi e condenou-o a vários anos de pena de prisão (já tinha uma pena suspensa). Depois de o programa ir para o ar, já com uma grande parte da pena cumprida, Éder foi por fim libertado. Mas só à custa de um indulto presidencial. “Num país mais avançado, o caso teria sido revisto”, aponta a jornalista.
Em Portugal, apesar de haver vários processos judiciais nascidos de investigações jornalísticas, quase não há episódios de casos reapreciados neste âmbito. Uma rara exceção foi um caso tratado pela jornalista Felícia Cabrita para a revista “Grande Reportagem”, no início dos anos 2000. Em poucas linhas, a história conta-se assim. Ivo, um homem casado, mantinha uma relação extraconjugal com outra mulher, também casada. Às tantas, é baleado, sem gravidade, alegadamente pela amante, e percebe, na esquadra, que esta o acusava de violação. O caso segue para julgamento, o advogado, aparentemente convicto de que este não seria condenado, aconselha-o a não revelar a relação extraconjugal e ele assim faz. Só que acaba condenado a pena de prisão. Passa cinco anos fugido na Alemanha, mais um na cadeia, pelo meio contacta Felícia Cabrita, para que ela o ajude a provar a inocência. Assim foi. Na reportagem então publicada, a jornalista apresentava várias provas de que o alegado violador afinal não tinha cometido qualquer violação, sendo apenas “culpado” de manter uma relação extraconjugal. O Supremo Tribunal de Justiça ordenou a repetição de julgamento, acabando por se provar a inocência de Ivo. Mas, ao contrário do que acontece nos EUA, o caso é uma raridade.
E, no entanto, o Código de Processo Penal deixa bem clara a possibilidade de um processo ser reaberto. “Se um inquérito foi arquivado porque não havia prova suficiente, quer em relação à prática do crime, quer em relação aos seus autores, que é o mais comum, o processo pode ser reaberto, caso o Ministério Público entenda que há elementos que justifiquem a reabertura”, sublinha Paulo Lona, magistrado do Ministério Público, que dirige o sindicato destes profissionais da Justiça.A exceção são os casos que já prescreveram e que necessariamente não podem ser reabertos, por muito que surjam provas irrefutáveis. Neste aspeto, Nelson Tereso vê vantagens no sistema americano. “Nos EUA não há prescrição de crimes de homicídio. E, no meu entender, a lei em Portugal também devia ser revista nesse sentido.” Sofia Pinto Coelho deixa outro reparo: “O problema também é o facto de a Justiça portuguesa estar muito acossada. Fixa-se demasiado em formalismos tolos, há muitos atrasos, é malvista na opinião pública. E os erros judiciais acabam por ser desvalorizados, para não se pôr mais lenha na fogueira.”
O fascínio pelos mistérios da mente
Voltando à vaga de interesse no “true crime”, vale a pena realçar alguns dados: o número de ouvintes de podcasts deste género nos Estados Unidos triplicou em cinco anos, atingindo os 19 milhões em 2023; entre 2018 e 2021, o consumo de séries documentais de crimes reais, também nos EUA, cresceu 63%. O que, no fundo, é resultado da mercantilização de um fascínio (por crimes violentos) quase tão antigo como a própria civilização.
Íris Almeida, psicóloga forense e coordenadora do mestrado de Psicologia Forense e Criminal da Egas Moniz – School of Health and Science (Almada), deduz, a avaliar pelo que vai ouvindo junto dos seus alunos, que o interesse vem, em parte, do “fascínio pelo que está na cabeça de quem comete crimes e pelos mistérios da mente humana”. Alerta, no entanto, para os riscos de uma disseminação selvagem deste tipo de programas. Por um lado, para as vítimas, por verem “exposto, muitas vezes em termos sensacionalistas, aquilo que vivenciaram”, por outro, para quem vê, sobretudo de forma excessiva. “Além de um potencial aumento dos quadros de ansiedade e do impacto no sono, há o risco de uma dessensibilização, de uma banalização do mal.”