
Seja porque não passam tempo suficiente com os filhos, porque mandam um berro ou porque os garotos atravessam uma fase difícil, a culpabilização, ora leve, ora pesada, é uma constante na vida de mães e pais.
Daniela Silva, 44 anos, é uma daquelas mães extremosas que, por entre dias de uma rotina desgastante e correrias desenfreadas, faz questão de estar sempre presente para os dois filhos. Leva-os à escola e às atividades extracurriculares, prepara cuidadosamente os lanches, no Natal faz até calendários de advento personalizados, com miminhos reservados para cada um dos dias. E ainda assim há uma culpa miudinha que anda sempre a rondar. “Por um lado, pergunto-me, quase constantemente, se estarei a fazer o melhor. Depois, há aquelas coisas mais práticas: por exemplo, de manhã temos de nos despachar para não chegarem atrasados à escola. E eu acho que é importante eles aprenderem a chegar a horas. Mas, para se despacharem, às vezes acabo por stressar um bocado. E depois dou por mim a pensar: ‘eles ainda são pequenos, será que valia a pena ter-me chateado para chegarem a tempo?’.”
O mesmo sentimento emerge noutras situações. Quando os filhos lhe pedem para os ir buscar mais cedo e ela não consegue, por exemplo. Ou quando está exausta lhe sai uma resposta mais ríspida e eles ficam sentidos. Por vezes, a culpa tem até a capacidade de se prolongar no tempo. Por exemplo, ainda hoje se lembra de quando foi para fora com o marido e o filho bebé. O mais velho, que ficou com os avós, despediu-se dela num pranto total. “Se fosse agora não o teria deixado, ainda hoje me sinto culpada por isso.” Em suma, diria que há uma névoa que está sempre a pairar. “Mas não é algo que me desanime e até acho que convivo de forma saudável com ela.”
E não, esta culpa miudinha não é algo exclusivo das mães. Rui Oliveira, de 42 anos, pai de uma menina de três, também sente algo parecido. “Amo tanto a minha filha, quero tanto fazer o melhor por ela, que quando vejo um pedacinho de desilusão do outro lado não me sinto bem.” Dá como exemplo uma situação recente. “Eu sempre fiz questão de a ir buscar às 16.30 horas. Os meus amigos até brincam comigo e perguntam se ela está lá a olhar para o relógio à minha espera. Mas recentemente tive um trabalho que se prolongou, e acabei por lá chegar mais de uma hora depois. Nesse dia, ela, que quando me vê faz sempre uma festa enorme, não disse nada, saiu a olhar para o chão. E quando lhe perguntei o que se passava, disse-me que eu não a tinha ido buscar e que já quase todos os meninos tinham ido embora. E eu tenho noção que a situação não é nada de especial, mas é um sentimento que te quebra a meio.”
De resto, assume que a culpa, ou algo muito semelhante, o acompanha durante o dia, em diversas escalas. “Criar um filho é uma aventura, não há manual de instruções. Devo acordá-la porque tem de ir para a escola ou deixá-la dormir mais um bocado porque está cansada? Ou quando me pede um gelado, mas até já comeu um no dia anterior: é melhor controlar a alimentação ou deixá-la viver um bocado mais? É uma constante interrogação.”
O sentimento é quase generalizado, particularmente “em pais de primeira viagem, que têm muitas expectativas em relação ao que vai acontecer”, salienta Clementina Almeida, psicóloga clínica especializada em bebés. “O sentimento de culpa é algo que acompanha os pais, desejavelmente de uma forma saudável”, observa Paulo Dias, psicólogo da infância e da juventude. Bárbara Fonseca, psicóloga clínica perinatal, lembra uma máxima comum e acrescenta-lhe uma nuance. “Costuma dizer-se que ‘nasce uma mãe, nasce a culpa’. Eu diria que, nalgumas situações, ela nasce ainda antes do bebé.”
Bárbara refere-se sobretudo aos casos de mulheres que têm dificuldades em engravidar. “Há a culpa de não estarem a conseguir, de não conseguirem dar ao companheiro ou companheira o bebé que tanto querem, de o corpo não estar a funcionar como devia, acham que não estão a fazer tudo o que está ao seu alcance, começam grandes dietas, acupuntura, uma série de coisas.” E o mesmo sentimento de culpa pode surgir durante a gravidez. Seja porque não se está feliz, porque ainda não se sente a conexão com o bebé, porque se está a stressar com o trabalho ou porque se teve uma discussão com o companheiro e o bebé “sente tudo”.
Depois, o nascimento da cria e o turbilhão que vem com ele é terreno fértil para que a culpa, ora leve e inconsequente, ora pesada e angustiante, se torne “quase omnipresente”. Bárbara explica. “O facto de ser tudo tão desconhecido e novo contribui para isso. Porque é que o meu bebé não pára de chorar? Porque é que não dorme bem? Será que não sou boa mãe? São perguntas muito comuns. E depois na altura de regressar ao trabalho e deixar o bebé na creche, também há culpa. Às vezes, até se sente culpa por se estar contente por querer voltar a trabalhar.”
Clementina Almeida, que diariamente atende pais e bebés, também realça que os progenitores têm muito “o peso de fazer a coisa certa e de corresponder às expectativas que a sociedade tem”. Ainda mais por se tratar de um período de particular “vulnerabilidade”. “Há a questão do sono, a questão do choro, que ainda é uma métrica que a sociedade usa para ver se os pais estão a fazer a coisa certa, o que não faz qualquer sentido e acaba por criar muita pressão.” Depois, à medida que o bebé vai crescendo, vão surgindo “outras pressões e culpabilidades”. “Se estou a fazer a coisa certa, se estão a ver ecrãs a mais, se estou a passar tempo suficiente com o meu filho. O tempo é cada vez mais uma questão para os pais, porque as famílias têm de pôr os bebés nas creches muito cedo e acabam por passar uma ínfima parte do dia com eles. Esta culpa nota-se muito.”
“Uma das culpas mais vincadas que vejo hoje em dia tem a ver com a dificuldade de os pais lidarem com as próprias emoções. Um pai que manda um berro ou dá uma palmada e logo a seguir se sente culpado”
Paulo Dias, psicólogo da infância e da juventude
Paulo Dias, cujo trabalho nas Clínicas Dr. Alberto Lopes se foca em crianças a partir dos cinco anos e se prolonga até à adolescência, garante que o sentimento se eterniza à medida que os filhos vão crescendo. “Uma das culpas mais vincadas que vejo hoje em dia tem a ver com a dificuldade de os pais lidarem com as próprias emoções. Um pai que manda um berro ou dá uma palmada e logo a seguir se sente culpado porque não devia tê-lo feito. Outra situação comum tem a ver com a dificuldade em estabelecer limites e impor autoridade.” Não raras vezes, também há culpa em situações de insucesso escolar, de divórcio ou de ausência recorrente. Nalguns casos, ela leva até a mecanismos inconscientes de compensação. “Há situações em que os pais passam tão pouco tempo com os filhos que, quando estão, enchem-nos de bens materiais ou toleram tudo. E estes comportamentos são perigosos porque retiram aos filhos competências que vão ser necessárias para enfrentar desafios ao longo da vida.”
Bárbara Fonseca estabelece, a propósito, uma distinção pertinente: “É sempre preciso perceber se falamos de uma culpa normal ou quase patológica. Porque, se não for exagerada, a culpa até pode ser protetora, no sentido de nos ajudar a questionar se estamos a fazer as coisas bem. Também não é saudável nunca sentir culpa. Agora, quando ela interfere no dia a dia, quando provoca ansiedade, tristeza, insegurança, é fundamental procurar apoio psicológico ou até psiquiátrico.” Nos casos menos graves, a partilha de experiências pode ajudar.
E afinal, de onde vem esta culpa? Por um lado, das expectativas que criamos. Mas a história pessoal tem o seu peso, salienta Clementina Almeida. “Também tem a ver com a forma como fomos criados. Se crescemos a sentir que não somos suficientes, é mais fácil acharmos que estamos a falhar. Depois, tem muito que ver com este campeonato constante do mundo moderno que dita que temos de ser os mais rápidos, os melhores e os mais eficazes a fazer tudo. A própria sociedade não está preparada para aceitar que a mãe fique em casa depois dos seis meses. E há muita coisa que acaba por ser atropelada no meio disto.”