Joel Neto

O trigo e o joio


A razão por que a inteligência artificial (IA) me assusta menos do que já assustou tem que ver com o que entretanto percebi: nós somos melhores. Ainda há pouco, aberto o computador, apareceu-me o símbolo do Copilot. Primeiro pareceu-me uma cagadela de mosca, mas afinal era o widget de uma nova ferramenta do Word, implantada com a última actualização do Office, e que vinha propor-se para (e cito) desbloquear todo o meu potencial criativo.

Pedi-lhe uma crónica sobre o Artur e ele juntou ao nome que lhe dei as únicas palavras que a página já tinha escritas, “Pai aos 50”, para me contar a história de um tipo de 50 anos, Artur, que se torna pai de um menino chamado Tomás. Mandei-o escrever uma notícia sobre a vitória do Sporting no campeonato e ele construiu um texto a propósito de como o dito triunfo premiava uma época de determinação e, não obstante as oscilações (que entendi como uma referência à partida do treinador), superioridade sobre os adversários. A Marta exigiu-lhe que nos falasse de um menino sem gosto em ir à escola, de nome Artur, e ele falou-lhe de um menino Artur ao qual todas as ideias agradavam mais do que a de ir à escola – e a cujo conto juntou, já não informações recolhidas pela Internet, mas o facto de haver aqui por casa brinquedos, árvores e cães, como terá encontrado nos arquivos do próprio Word.

E isso, paradoxalmente, tranquilizou-me. Há muito que me preocupava como seria o futuro do meu filho num Mundo em que já não haverá nada que as máquinas não se proponham fazer melhor do que ele. Mas as máquinas apenas fazem depressa uma parte daquilo que nós já fazemos. Experimentem pedir-lhes, não para contarem uma anedota, mas para encontrarem humor nos interstícios de uma tragédia. Ou para decifrarem a intimidade entre dois homens de negócios que vão a um bar de strip ao final de uma reunião de negócios. Não conseguem. O que as máquinas fazem é matemática, algoritmo, cálculos padronizados, eficientes e desprovidos de ambiguidade. Aquilo que nós fazemos, o que nos distingue, é tudo o que transcende isso.

Toda a inteligência é humana. É da nossa inteligência que as máquinas se sustentam, e nunca conseguirão apreendê-la toda. A IA não vai tornar inútil o esforço de um escritor: vai afastar do caminho deste a tentação da facilidade, a pressão da literatura fácil, o espaço para a consagração da mediocridade. O mesmo com a música, a pintura ou a própria maneira com que se extrai um baço, se muda um pneu ou se gere uma empresa – isto é: com ou sem cultura, com ou sem sabedoria. Há-de ficar mais claro o que importa e o que é irrelevante. E a nós só nos resta continuar a educar o nosso filho para o que importa.