O que as nossas origens dizem sobre nós

Há quem faça testes genéticos e há quem recorra à genealogia, tudo para alimentar a curiosidade de conhecer os antepassados. E muitos encontram explicações para características comportamentais e traços de personalidade nesses resultados. Mas, afinal, ter ascendência nórdica, sangue africano, asiático ou descender de D. Afonso Henriques influencia quem somos?

Estávamos nos finais dos anos 1990 quando a empresa Linhagens – Investigação Genealógica apareceu, de um acaso e de uma paixão. Um grupo de amigos universitários, que gostava de genealogia e se dedicava a descobrir antepassados nas horas vagas, começou a ser solicitado por outras pessoas para fazer as suas árvores genealógicas a troco de dinheiro. E assim nascia o projeto, que começara informal, e fora crescendo até chegar às malhas da Internet (que proporcionou a proliferação desta tendência). “Já tínhamos feito a nossa genealogia, tínhamos alguma experiência. Não há propriamente formação académica nesta área. Mas é evidente que há técnicas e saberes que se adquirem com o curso de História que ajudam muito”, apressa-se a explicar António Braga, historiador e sócio da empresa. O projeto ganhou escala e há vários packs no site, árvores de cinco gerações, de seis, de sete, tudo o que é preciso é uma certidão de nascimento ou a data e freguesia de nascimento da pessoa. “Um dos nossos primeiros trabalhos foi para uma emigrante portuguesa no Canadá, com um apelido bastante banal, uma família de origens transmontanas, e foi muito fácil descobrir que era descendente dos reis de Portugal”, comenta António Braga.

A ambição por ter sangue azul, um antepassado aristocrático, era, aliás, uma das maiores expectativas dos clientes no princípio. “Hoje não, ficam entusiasmados por terem um antepassado cigano ou judeu.” Mas o que leva as pessoas a quererem conhecer a sua árvore genealógica? “É indiscutível que transportamos em nós um legado e a genealogia é um caminho para descobrir esse legado. É possível descobrir o nome, onde nasceu, a profissão ou o estatuto social de um antepassado. E isso, para a maior parte das pessoas, é uma procura por uma identidade. Por perceberem que são o resultado de muitos antepassados, que viveram em sítios completamente diferentes, de muitos acontecimentos e escolhas. Eu, por exemplo, chamo-me Braga porque tinha um tetravô que era de Braga e que se mudou para o Alentejo, onde ficou conhecido como o Braga.”

Mas olhemos para a questão a nível comportamental, de traços de personalidade, foquemo-nos no que os nossos antepassados podem dizer sobre as nossas ideologias, os nossos gostos, os nossos hábitos, a nossa personalidade. Haverá alguma ligação? “Há um provérbio árabe que diz ‘os filhos parecem-se mais com o seu tempo do que com os seus pais’. O que somos a genealogia não pode ajudar a descobrir.” Ainda que, reconhece o historiador e genealogista, “através da profissão ou do estatuto social de um antepassado, a pessoa tenha o direito a recriar a sua história e a sentir que é um contributo para a maneira como se entende a si mesma”.

O fenómeno dos testes genéticos

Certo é que a genealogia é, hoje, um gigante negócio online, com grandes plataformas internacionais como MyHeritage ou FamilySearch – onde não há genealogistas a fazer a investigação como no caso da portuguesa Linhagens, mas sim o recurso a enormes bases de dados – a dominarem o mercado. E, a par da genealogia, os testes genéticos para descobrir a ancestralidade também ganharam espaço. Através da genética, do envio de uma simples amostra de ADN, é possível descobrir quais as nossas origens a nível geográfico ou étnico. Por exemplo, se temos alguma percentagem de ascendência africana, asiática, nórdica, se descendemos de judeus sefarditas ou de ciganos. E pululam pelas redes sociais vídeos onde muitas pessoas, perante os resultados, parecem perceber porque sempre gostaram de música africana, por que razão sonham viajar para a Noruega ou a explicação para terem uma personalidade mais aguerrida. Terá isto algum fundo de verdade?

“Não podemos, de modo nenhum, negar que existem variantes genéticas que estão associadas a características comportamentais como a agressividade ou o desejo por aventura. Agora, associar comportamentos à ancestralidade das populações é muito difícil”, aponta Pedro Soares, arqueogeneticista da Universidade do Minho, que tem vindo a estudar, através da genética, as nossas origens, e que alerta que as populações têm histórias bastante complexas e muitas misturas ao longo dos anos. O geneticista recorda que, “em tempos, muitas pessoas descobriram que tinham sangue viking e concluíram que era por isso que eram mais agressivos e que partiam facilmente para a aventura”. De facto, refere, existem variantes genéticas, nomeadamente nos genes de regulação da dopamina, que faz com que determinados indivíduos sejam mais exploradores. “Mas não há estudo que demonstre que isso esteja associado aos antepassados.”

Se formos mais longe, às questões sociais e culturais, como é o caso dos nossos gostos musicais, a teoria cai completamente por terra. “Isso tem muito pouco a ver com a genética. A cultura e a genética estão bastante afastadas. A genética deixa apenas sinais, nunca em coisas culturais, de gostos pessoais, mas antes em questões metabólicas ou comportamentais”, e mesmo aí é difícil encontrar ligações com a ancestralidade. Até porque aquilo que somos é resultado de uma série de variantes. Além da genética, o meio onde crescemos, a forma como fomos criados, tudo isso entra em jogo. “No máximo, a genética dá-nos uma maior preponderância para algumas características de personalidade.” E há que fazer uma ressalva: os testes genéticos para descobrir a ancestralidade, amplamente comercializados online sobretudo por empresas norte-americanas, “são bastante fidedignos”, “o problema está na interpretação que as pessoas fazem”.

Patrícia Maciel, diretora do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Universidade do Minho, tende a concordar. Primeiro, porque embora haja muitas componentes do comportamento que são determinadas geneticamente, “características como ser curioso, ousado, ter mais tendência a arriscar, ou até a inteligência, tipicamente não são definidas por um único gene, mas por centenas de variantes, e, por isso, não são transmitidas de forma assim tão simples”. Neste sentido, defende, “conhecer a nossa genealogia ou as nossas características genéticas, pelo menos para já, não acrescenta muito ao nosso conhecimento sobre o que somos do ponto de vista psicológico ou comportamental”. Com algumas exceções, nomeadamente no que toca ao risco de depressão, já que “há algumas variantes genéticas que poderão determinar uma probabilidade” neste campo.

Segundo, e olhando à ancestralidade, a geneticista chama a atenção para um detalhe. Por exemplo, ter sangue africano, “que é o continente mais diverso do ponto de vista genético, basicamente não diz nada, porque a diversidade aí é tão grande, até ao nível de características físicas, que atribuir características temperamentais a todo um grupo só pela sua origem geográfica” não lhe parece “que tenha sustentação”. E concorda com Pedro Soares quando diz que aquilo que somos é fruto da genética, mas é muito moldado pelo ambiente em que vivemos. “Também herdamos o ambiente da nossa família. E é muito difícil discriminar o que é que no nosso comportamento foi herdado biologicamente ou socialmente. Entre grupos populacionais mais ainda.”

Apesar de tudo, há uma certeza, a de que “há muita curiosidade em saber quais as nossas origens”. “Várias pessoas do meu círculo já fizeram estudos genéticos para saberem qual a sua ancestralidade. Estes testes não permitem saber, como a genealogia faz, se descendem de um rei, mas consegue-se saber se há origens do norte de África, nórdicas ou até de judeus sefarditas”, realça Patrícia Maciel. No final das contas, como diz Pedro Soares, “temos sempre curiosidade em saber mais acerca de nós próprios, mas o que a ancestralidade diz sobre nós é muito limitado”.