O Natal é uma autoestrada
A Benedita é muito bonita. De uma beleza portuguesa, bem temperada, o cabelo farto e castanho, os olhos grandes, aconchegadas por pestanas grossas e reviradas, como se fossem aumentadas à lupa. Chegou este outono à adolescência: as calças ficaram curtas de repente, o peito começou a ganhar forma e os rapazes metem conversa com ela na escola sem jeito nem assunto. Como todas as meninas, está apaixonada pelo pai, quer ser parecida com a mãe e não percebe porque é que o pai e mãe se divorciaram.
A grande mudança na sua vida aconteceu há mais de quatro anos, mas lembra-se como se fosse hoje; numa manhã de inverno, a mãe fez as malas e mudou de cidade. Meteu-se na autoestrada com o carro a abarrotar de tralha rumo a Lisboa e ela no meio da decisão. Mal teve tempo de abraçar o pai, um metro e noventa de homem a chorar e a limpar o nariz à manga da camisa, como fazem as crianças e como faz a Benedita quando chora na autoestrada e a mãe vai tão atenta ao caminho que nem dá por isso.
A sua memória, ainda desarrumada pela tenra idade, guarda imagens de um tempo que nunca mais vai voltar, quando os pais viviam na mesma casa e passavam o Natal juntos. À medida que os anos correm, já não sabe se viveu mesmo esses momentos, ou se é ela que se põe a imaginar uma outra vida, a vida que gostava de ter tido se os pais não se tivessem separado.
O pai vive a mais de 100 quilómetros da capital. Cada vez que estão juntos, ou ele vem a Lisboa, ou a mãe a leva pela autoestrada até à casa do pai. Mas o pior é o Natal: o pai gosta de passar a noite de 24 para 25 com ela, a mãe também. E no dia 25 há sempre dois almoços, um em casa de cada avó, e a Benedita nunca sabe a qual é que pode ir e a qual é que vai faltar e põe-se a pensar nos presentes que compraram para ela na casa onde não foi.
A história de Benedita é igual à de milhares de crianças em Portugal, que está entre os países da Europa com a taxa de divórcio mais elevada. O território não é gigante e, pelo menos, no que respeita a autoestradas estamos bem servidos, por isso as famílias vão dando um jeito, hoje aqui, amanhã ali, todos os anos é uma lufa-lufa de norte a sul e de este a oeste para chegar a todos os lados em dois dias.
Esta é a realidade de muitas famílias portuguesas, que se desdobram para ver os filhos no Natal, e, mais tarde, os netos.
Às vezes penso que o Natal é como uma família, quando se parte ao meio perde o encanto, o conforto e a magia. Um Natal partido é como um coração despedaçado, não há cola que remende, porque o que está quebrado não tem conserto e o que não tem conserto fica a doer-nos para sempre. O amor é feito de muitas coisas e construído a pulso, com cedências e sacrifícios. Não basta querer para amar, nem basta amar para se ser feliz; é preciso que reine o entendimento para que as pessoas não se separem e os filhos não tenham de andar pelas autoestradas no dia de Natal a viver a angústia das famílias partidas.
A entrar em 2025, ainda sonho com um Mundo um pouco mais arrumado.
Talvez seja ingenuidade, eu gosto de lhe chamar esperança.