O namoro ao longo dos tempos

Do controlo total à liberdade sem freio, da virgindade imaculada aos múltiplos parceiros, das cartas às videochamadas. Relatos de casais de diferentes gerações, que são também uma viagem de décadas pelos caminhos do amor.

Claudino Silva Pinhal, 78 anos de uma vida cheia, teria uns 18 quando se encheu de coragem e foi pedir Armanda Silva, hoje com 77, em namoro. Não à própria, entenda-se. “Nada disso, vim falar com o padrinho dela, que era como se fosse pai, e perguntar se podíamos namorar”, esclarece. A resposta tirou-lhe um peso de cima, a bênção estava dada, aquele amor deixava por fim de ser um namoro mal disfarçado e passava a relação assumida. Na prática, Claudino pôde passar do portão de casa para a sala de estar. Mas a mudança não foi tão grande assim.

“Nunca estávamos aqui só os dois, era sempre com a família”, ressalva Armanda. Até aí, tudo era ainda mais camuflado. “Conhecemo-nos através do nosso grupo de amigos, na altura íamos todos para a praia do Titan e ele começou a catrapiscar-me”, recorda a septuagenária, com um sorriso doce que resistiu ao tempo. “Às vezes via-a a ir fazer algum recado e lá ia atrás dela, achei-a sempre diferente das outras”, justifica Claudino, meio sem jeito. Estão ambos sentados no sofá da casa em que vivem há décadas, mas que só há um par de anos se tornou um lar a dois. Por toda a sala, há retratos familiares, deles, dos que partiram, das duas filhas, dos cinco netos, pedaços de uma “vida bonita”, resume Armanda.

Regressemos, por agora, àqueles anos desafiantes da juventude, onde até o desejo de passarem uma nesga de tempo a sós era proibido. “Quando a Armanda começou a trabalhar numa modista, ainda muito novinha, eu saía do trabalho [na APDL – Administração dos Portos do Douro e Leixões], ia para lá esperar que saísse e vinha com ela até casa”, recorda o empresário de Leça da Palmeira. A esposa completa a viagem ao passado e lembra as restrições típicas daquela época. “Íamos sempre dar uma volta maior, pela praia, para podermos passar mais tempo juntos. Os meus padrinhos desconfiavam, mas durante muito tempo era tudo às escondidas.” Era o tempo do Estado Novo, dos namoros à janela e “à sala” – os tais em que o convívio implicava a presença dos familiares -, do toque interdito, dos passeios vigiados.

O primeiro beijo, fugidio como o tempo, foi, pois, dado no maior sigilo, algures num recanto da pedreira que ali existia, perto da marginal de Leça, onde já então viviam. Quanto ao sexo, como mandavam os bons costumes da época, só mesmo depois do casamento. “Casámos virgens”, assumem, descomplexados. Depois do sim, Claudino mudou-se por fim para a casa de família da companheira, durante décadas viveram todos juntos.

À medida que Armanda fala, o marido vai vasculhando fotos antigas, pontualmente interrompe para mostrar uma ou outra em que a mulher surge particularmente bonita. “Olhe-a aqui com 19 anos. Já viu, como é que eu não havia de ir atrás dela?”, regozija-se, vaidoso. As coisas não foram sempre luminosas, admitem. Desde logo, porque a vida não era de todo fácil. “Eu tinha cinco irmãos e o nosso pai morreu muito cedo, tive de deixar a escola [voltaria mais tarde] e começar a trabalhar aos 14 anos, fui obrigado a passar de filho a pai.” Mas houve outros contratempos pelo meio. Como os ciúmes.

“Ela sempre gostou de dançar, eu era um pisa-papéis, mas também não gostava que ela andasse a dançar com outros. Então na altura das rifas, as festas da altura, ela punha-me a andar para poder ir dançar à vontade. Era sempre o motivo das nossas zangas.” Armanda não responde à provocação, ri-se com vontade, há entre os dois uma cumplicidade que enternece. E ainda houve as saudades, no tempo em que Claudino foi para a tropa, e mantinham o contacto através de cartas. Armanda põe-nas sobre a mesa, como quem nada tem a esconder. “Amor, estou triste porque queria que estivesses aqui”, lê-se numa delas.

Quando começaram a namorar, Claudino Silva Pinhal e Armanda Silva tinham de se esconder (Leonel de Castro)

Nisto, já lá vão mais de 60 anos juntos (contando com o namoro), já correram a Europa, fizeram cruzeiros sem-fim, viram a família a alargar e os tempos a virar. Drasticamente. “Hoje, a minha neta ate já fica aqui a dormir com o namorado, isto na nossa altura seria um escândalo”, aponta o patriarca, sem despeito algum.

Maria Isabel Dias, docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto que há muito se debruça sobre a sociologia da família e do género, lembra que, durante décadas, as relações sexuais pré-matrimoniais estavam “praticamente interditas”. “Fazê-lo era visto como um pecado e como condição de exclusão da mulher de todas as oportunidade, até da conjugalidade futura. A preservação da virgindade era um valor fundamental.” Entretanto, veio o 25 de Abril e com ele todo um leque de revoluções, desde logo em relação “ao comportamento da mulher, que passou a poder desfrutar de múltiplas experiências sexuais, sem que isso condicionasse o seu futuro”.

A democracia, e a progressiva mudança de costumes e valores, trouxe aos enamorados outra liberdade, outra autonomia também, encontros mais informais, novos espaços de socialização, relacionamentos mais espontâneos, abertos e flexíveis. E sim, a emancipação feminina teve o seu peso neste processo. “As mulheres têm hoje mais autonomia e capacidade de acabar uma relação. A noção de sacrifício e do casamento para a vida não existe, e ainda bem, porque, enquanto vigorou a Concordata com a Santa Sé, havia muitos casais que na prática já não o eram, mas que não se podiam separar. Hoje, o casamento já não é visto como um sacramento, é uma espécie de contrato, que pode ser rescindido.

“Pronto, toma. Queres casar?”

Quase quatro décadas depois de Claudino se ter dirigido ao padrinho de Armanda para a pedir em namoro, foi a vez de Rute Simões, de Almada, e Hugo Pinto, de Cascais, serem atingidos em cheio pela seta do cupido. Mas a forma como a relação começou não podia ser mais distinta. “Foi na passagem de ano de 2001 para 2002, numa festa em frente ao Casino Estoril. Não houve pedido de namoro, na verdade houve uma beijoca à meia-noite e pronto, só três noites depois é que ela voltou a casa”, partilha Hugo, de 49 anos, sempre bem-humorado.

Mas, ao contrário do que possa parecer, também no caso deles as coisas aconteceram devagar (pelo menos, à luz dos dias de hoje). Rute, agora com 46 anos, andava na faculdade com a irmã de Hugo, conheceram-se no aniversário dela, ele ficou logo “hipnotizado”, desconfia até que se apaixonou assim que a viu, mas só se reencontraram um ano depois, quando a irmã de Hugo voltou a festejar o aniversário – e aí sim, começou uma aproximação irremediável.

“Falámos, falámos, falámos, e temos estado a falar desde então. Eu desatava-me a rir com qualquer coisa que ele dissesse”, realça Rute, derretida. “Durante três meses, toda a gente achava que nós tínhamos alguma coisa, mas não tínhamos mesmo”, garante Hugo, com ar de quem já repetiu o mesmo vezes sem conta ao longo dos anos. Rute jura a pés juntos que é verdade. “Estávamos sempre juntos, mas éramos só amigos. Eu dizia-lhe: ‘O dia correu-me mal, queres ir dar uma volta?’ E andávamos sempre a passear, pela praia, por Lisboa.”

Às vezes, iam tomar café à noite e assim que voltavam para casa lá estavam eles, no mIRC [um programa de chat nascido em meados dos anos 1990], a falar virtualmente até às tantas. Um bom exemplo de como as tecnologias vieram acrescentar novas dinâmicas às relações de namoro. “Na altura até já tínhamos telemóvel, mas as mensagens escritas eram muito caras”, salienta Hugo.

Entretanto, veio a tal passagem de ano. E daí em diante tornaram-se oficialmente inseparáveis. “Eu morava na Cova da Piedade. De transportes, demorava duas horas a chegar à Parede”, recorda Rute. Nada que a detivesse, ainda assim. “Lia muitos livros”, acrescenta, a rir. À ida, Hugo ia levá-la, o que também lhe valeu umas quantas aventuras. “Lembro-me que uma vez estava a voltar e a ponte estava fechada. Acabei por ficar a dormir no carro durante umas horas. E houve uma outra vez em que o motor do carro ardeu à entrada da ponte.” Hugo aproveita para brincar, o tal sentido de humor que ainda hoje deixa Rute pelo beicinho: “Esta relação foi sempre explosiva”.

Rute Simões e Hugo Pinto começaram a namorar no início do século. Hoje, dizem, é tudo “muito diferente” (Rita Chantre)

Nisto, Rute já ia ficando a dormir em casa dos sogros, mas nunca contava em casa. “O meu pai era muito tradicionalista e não via com bons olhos o facto de estarmos juntos sem sermos casados. Por isso, dizia sempre que ia dormir a casa de uma amiga. Ou que ia ficar na faculdade a fazer um trabalho.”

Dois anos depois, algures em 2003, veio então o pedido de casamento. Num estilo pouco convencional, diga-se. “A mim não me tinha passado pela cabeça pedi-la em casamento, porque ela era bué de bruta, não queria casamento, nem filhos, nada. De repente, tau, pede-me em casamento.” O relato de Hugo oscila entre a graça e a ternura. Rute junta-lhe o lado dela. “Nessa noite, tínhamos ido jantar e eu tinha ensaiado todo um discurso para o pedir em casamento. Mas depois aquilo não me saía. E ele insistia que tínhamos de ir embora porque tínhamos combinado ir ao cinema. Então às tantas só lhe pus o anel à frente e disse: ‘Pronto, toma. Queres casar?’.” E ele quis.

Hoje, têm três filhos, de nove, treze e dezasseis anos. E as diferenças entre o tempo em que começaram a namorar e os dias de hoje parecem-lhes evidentes. “Com as redes sociais é tudo muito diferente”, começa por apontar o marido. “Às vezes o que me parece é que os miúdos de agora têm todos os instrumentos ao dispor, mas não sabem como os usar. E depois têm vidas tão preenchidas que passam menos tempo juntos, e acaba por haver um contacto mais baseado nas redes sociais. Exatamente o oposto do que acontecia na nossa altura.”

Hugo volta até a recuar no tempo, para apontar uma diferença que lhe parece substancial. “Nós passámos tempos difíceis, a Rute tinha endometriose e sofria muito com as dores, tinha de ir muitas vezes ao hospital, de ambulância, teve médicos a dizer-lhe que as probabilidades de conseguir ter filhos era de 1% [hoje, vale a pena repetir, têm três]. Mesmo assim, nunca nos passou pela cabeça desistir. Nos dias de hoje, diria que 1% das relações aguentaria isto. Hoje, tens uma discussãozinha por causa de uma ida ao cinema e bloqueias alguém no Instagram.”

Maria Isabel Dias também reconhece mudanças significativas, induzidas pelas tecnologias e redes sociais. “Por um lado, facilitam a comunicação e ajudam os casais a alimentar a relação conjugal, mesmo à distância. Cada vez mais vemos o conceito de ‘living together apart’, em que os namorados já não precisam de estar no mesmo lugar. E as tecnologias têm esse condão de alimentar e reforçar essas relações.”

Mas também encerram um lado perverso. “Por um lado, facilitam o envio de mensagens desagradáveis, com coisas que não se conseguem dizer cara a cara. Por outro, as pessoas refugiam-se nas tecnologias para não lidar com a dor, muitas vezes até para acabar as relações, e há aqui uma dimensão que se perde. Às tantas, parece que nem custa nada acabar.” Este aspeto cruza-se com um outro, de as relações serem hoje “cada vez mais fluidas e menos duradouras” e de os jovens procurarem “coisas diferentes nas relações”. “Há uma procura incessante de felicidade e se um dos elementos do casal não se encontrar gratificado, sobretudo no plano afetivo ou sexual, isso é razão para pôr termo à relação.”

Carolina Maurício, de 24 anos, e Filipe Maio, de 26, ela de Aveiro, ele de Ílhavo, reconhecem isso mesmo. “A nossa geração vai muito por aí, há um problema e facilmente se desiste”, admite Filipe. Ao ponto de hoje, com seis anos de namoro já completos, serem mais a exceção que a regra. Cruzaram-se pela primeira vez numa festa académica em Aveiro, Filipe encheu-se de coragem e mandou mensagem no Instagram, ela ainda tardou a responder, mas quando começaram a falar não mais pararam.

Carolina Maurício e Filipe Maio namoram há seis anos. Viram-se numa festa e começaram a falar no Instagram (Maria João Gala)

O primeiro pedido de namoro bateu no poste – “fui rejeitado”, brinca Filipe, com fair play -, mas depois Carol avançou destemida e fez ela a pergunta, têm estado juntos desde então, mesmo com dificuldades à mistura. Desde logo, o facto de viverem a relação quase sempre à distância. Filipe joga futebol e tem corrido o país, cada ano numa cidade diferente. Valem-lhes os fins de semana que passam juntos – ora na casa dos pais dela, ora na casa dos pais dele, ainda que tenha havido alguma resistência inicial – e, no resto do tempo, o telefone, melhor aliado contra as saudades.

“É complicado. O que nos mantém conectados é o facto de falarmos todos os dias, por videochamada e por mensagem. Isso ajuda a mantermo-nos mais próximos. Tanto que, quando por algum motivo passamos dois dias sem falarmos por videochamada, notamos logo que isso faz uma grande diferença”, constata Filipe. Mas também reconhecem um lado menos bom na era das redes sociais. Carol assume-o sem rodeios. “Vemos tanta gente a transmitir a ideia de que tudo é perfeito que acaba por haver uma pressão maior. E o mesmo em relação a certas fases da vida: se vemos um casal da nossa idade que já comprou casa, e nós ainda nem vivemos juntos, a comparação acaba por ser inevitável.”