Joel Neto

O comboio


Nenhum de nós se lembra da primeira vez, embora entretanto as circunstâncias nos tenham persuadido de ter sido no Natal passado. A verdade é que, a certa altura, a desconfiança do Artur para com a metade da sala comum a que os meus avós chamavam quarto de jantar, e a que nós decidimos chamar apenas “a sala”, nos pareceu ter lá estado desde sempre. Às vezes era só um passar de largo, outros um evidente olhar torcido. Até que ele adquiriu um substantivo adequado e, ao ouvir a Marta tornar a perguntar-lhe o que se passava, o verbalizou:

— Tem medo.

Mas ser capaz de dizer do quê é arte de uma natureza inteiramente diferente, e durante muito tempo esgotámos possibilidades. Esquadrinhámos a sala com os olhos, revirámo-la com as mãos: não pareciam ser as sombras, não pareciam ser os espelhos nem os rostos nas fotografias. Recapitulámos os nossos próprios medos de infância – nada. Lembrei-me de quando o meu primo Nelito me apavorou com histórias sobre o diabo, mas eu tinha cinco anos e o Artur tem apenas dois (acabados de fazer). Até que ele apontou:

— O carro.

E, enfim, nós percebemos. Não era um carro, era um comboio, um daqueles simulacros de brinquedo antigo que se compram na loja do chinês: um pequeno comboio que percorre uma pista em oito, à vista de árvores e casas de plástico mal moldado, e de que ele tinha sentido um inexplicável pavor no Natal de 2023, quando o sentei em frente àquilo, todo romântico, e liguei a locomotiva.

Percebemo-lo e arrumámos de imediato o comboio na caixa dos enfeites de Natal. A Sónia viu-o lá, pensou que era engano, pô-lo a enfeitar o aparador e, assim que chegámos a casa, apressámo-nos a arrumá-lo de novo, antes que o pequeno o visse. Os medos cessaram no dia seguinte: bastou mostrarmos-lhe a louceira vazia do brinquedo que ali largáramos um ano antes. Perguntei-me: “Para onde levará aquele comboio o meu filho? Quem lhe trará? Que personagem sombria entrará na estação onde o Artur não tinha pensado sair e, encurralado, já não conseguirá de facto sair?”

Desses lugares vêm os livros: de um medo que é só nosso, de uma esperança que ninguém parecia ter tido, de um sonho que afinal todos acalentámos mas a que nenhum dera nome. Enterneci-me muito, com esta nova vaidade de que antes me ria, e que é a de ser pai de alguém que fez, ou que consegue, ou que disse. E, quando apareceu um comboio na Masha e o Urso, fazendo-o esconder-se atrás da minha perna, sorri com bonomia: “Como é possível termos levado tanto tempo a perceber?”

O problema é que, hoje de manhã, estava lá o olhar torcido outra vez, e agora já não há comboio. Temos de começar tudo de novo?