Negligência climática. O custo ambiental de mais quatro anos de Trump

Ao longo dos anos, Donald Trump foi colecionando tiradas inusitadas e jocosas sobre as alterações climáticas, demonstrativas do desprezo que tem por este tema (Allison Robbert-Pool/Getty Images)

Tomada de posse do novo presidente americano tem lugar esta segunda-feira. Aposta nos combustíveis fósseis e na desregulação ambiental fazem temer o pior para o futuro do Planeta.

Em 2012, ainda antes de se lançar à primeira corrida presidencial, Donald Trump agitava o Twitter com uma das suas frequentes teorias da conspiração. “O conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses para tornar a indústria dos EUA não competitiva”, escreveu. Quatro anos depois, em março de 2016, durante uma visita ao “The Washington Post”, reiterava: “Não acredito muito nas mudanças climáticas provocadas pelo homem”. Em 2018, disse até ter “um instinto natural para a ciência”, que o levava a duvidar das alterações climáticas. E em 2019 achou por bem fazer uma piadola com o tema: “Em Chicago fará -20 ºC, a temperatura mais baixa já registada. Onde está o aquecimento global quando precisamos dele?”, questionou. De resto, ainda em setembro passado, chamado a comentar o rasto de destruição deixado pelo furacão Helene, que devastou parte da Florida e causou mais de 200 mortes, saiu-se com esta: “As questões climáticas são uma das maiores fraudes de todos os tempos”. Tudo isto seria mera anedota se em causa não estivesse o homem que se prepara para comandar os Estados Unidos por mais quatro anos. E se o Planeta não estivesse já a agonizar com as alterações climáticas e o aquecimento global, como provam os fenómenos extremos que se têm multiplicado pelo Mundo.

Algo que não parece preocupar nem um bocadinho o próximo inquilino da Casa Branca. Aliás, o novo presidente americano deixou isso bem vincado ao longo da última campanha presidencial, em que o slogan “drill, baby, drill” [numa tradução livre, “perfurem, perfurem”] foi lema constante. Ou quando, no discurso de vitória, lembrou que os EUA têm “mais ouro líquido do que qualquer outro país do Mundo”. Como quem frisa que a aposta nos combustíveis fósseis é para ser reforçada, em claro contraciclo com o caminho de progressiva adesão a fontes de energia limpa que se vai fazendo à escala global. Em março do ano passado, uma análise do Carbon Brief, site britânico focado nas questões ambientais, que já venceu vários prémios de jornalismo de investigação, estimava mesmo que uma vitória de Trump poderia levar a um aumento de quatro mil milhões de toneladas de emissões dos EUA até 2030, em relação aos planos do então presidente Joe Biden. A análise salientava ainda que um incremento desta ordem seria suficiente para anular todas as emissões poupadas pela implementação de tecnologias limpas no Mundo nos últimos cinco anos. Vale a pena realçar que os Estados Unidos são a primeira economia do Mundo e o segundo país que mais gases de efeitos de estufa emite. A perspetiva é ainda mais dramática se tivermos em conta que os resultados das políticas ambientais implementadas até ao momento têm ficado sucessivamente aquém das metas estabelecidas.

Mas recuemos, para já, até ao primeiro mandato de Trump. Entre 2017 e 2021, o líder republicano revogou mais de 100 leis ambientais, desde logo as respeitantes à exploração de campos de petróleo. Mas também alterou os limites estabelecidos para o uso de combustível fóssil em automóveis. E autorizou um aumento de 30% no que toca à extração da madeira de parques nacionais. Acresce que o número de processos criminais abertos pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) contra empresas que desrespeitaram a legislação ambiental foi o menor em 30 anos. Além da badalada retirada do Acordo de Paris, pacto assinado pela comunidade internacional em 2015, com o intuito de limitar o aquecimento global. O resultado de tudo isto? Uma inversão da tendência de queda de emissões que se vinha a registar durante os oito anos de presidência de Barack Obama.

Um ativista com uma máscara de Donald Trump posa para os media num protesto contra as políticas ambientais do recém-eleito presidente americano, junto à embaixada americana, em Londres (Tolga Akmen/EPA)

É certo que o país voltou ao Acordo de Paris assim que Joe Biden sucedeu a Trump, mas o regresso tem os dias contados, dado que o novo presidente já demonstrou a intenção de voltar a retirar-se do tratado. Há até rumores de que os EUA vão abandonar o tratado fundador das negociações da ONU sobre o clima (Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas). Francisco Ferreira, da associação ambientalista Zero, não tem dúvidas de que, a confirmar-se, a saída dos EUA do Acordo de Paris tem “um impacto dramático, à escala global”. “Obviamente vai fragilizar o único instrumento de compromisso entre países que temos para as próximas décadas e pode ser usado como justificação para muitos países não cumprirem as suas metas.”

Nuno Gouveia, especialista em política americana, também entende que o primeiro impacto “será sobretudo ao nível político”. “Quando um país como os EUA se retira de um tratado tão importante como o Acordo de Paris, isso inevitavelmente tem impacto na discussão global”, adverte, apontando à “mudança de retórica” que aí vem: “Há uma crença, por parte de Donald Trump, de que as questões ambientais prejudicam a competitividade.” Tanto que, nos últimos meses, Trump foi insistindo na liberalização de todos os projetos de energia, incluindo os relacionados com os combustíveis fósseis.

Daniela Melo, cientista política formada nos EUA e professora na Universidade de Boston, resume o pensamento político do novo presidente nesta matéria: “Defende menos regulação ambiental e o uso absoluto de todos os recursos naturais que o país tenha ao seu dispor para valorizar a economia americana e reduzir a dependência do mercado internacional. No fundo, a ideia que tem, e foi essa uma das grandes promessas da campanha, é que os EUA devem ser autossustentáveis”. A qualquer custo, como já se percebeu.

Outra questão premente tem a ver o Inflation Reduction Act [Lei de Redução da Inflação], uma lei federal que entrou em vigor em 2022, durante o mandato de Joe Biden, e que, entre outras coisas, previa incentivos chorudos ao desenvolvimento de energias renováveis. Trump, ao seu jeito, já prometeu atirá-la para o lixo. Mas pode não ser tão fácil como pensa. Daniela Melo explica: “Desde as eleições, Biden tentou fazer a alocação de fundos o mais rápido possível, para que Trump já não pudesse voltar atrás. Conseguiu distribuir cerca de 74 mil milhões de euros, destinados sobretudo a distritos republicanos, e isto não é por acaso. A instalação de novas fábricas gera milhares de empregos e isso importa aos representantes no Congresso. Daí que comecemos a ver resistência à revogação destas medidas, mesmo do lado republicano. É provável que por questões pragmáticas, administrativas e burocráticas, a intenção de Trump fique parcialmente pelo caminho”.

Incêndios indomáveis varreram várias zonas do estado da Califórnia, desde logo o bairro de Pacific Palisades, que ficou reduzido a cinzas (Ted Soqui/EPA)

Também Francisco Ferreira acredita que os imperativos económicos podem atenuar os efeitos da presidência de Trump. “Sem dúvida que o impacto se vai fazer sentir, nos EUA e não só, e acho que à escala global vai ser dramático, mas a própria economia parece estar a comprovar que o investimento em energias renováveis é o caminho mais viável. Mesmo quando Donald Trump diz que não quer mais eólicas, como fez recentemente, a verdade é que há já um lastro de políticas que será difícil reverter. Só no financiamento da transição energética estima-se que haja mais de 300 mil milhões de dólares investidos. E que, mais não seja em nome da racionalidade económica, isso será difícil de contrariar. Isto não significa otimismo, mas alguma esperança de que a catástrofe seja atenuada.”

Daniela Melo ressalva, no entanto, que Trump tem formas de boicotar a transição energética, seja através do fim dos incentivos às empresas desta área, da revogação da isenção federal que permite ao estado da Califórnia ser líder em matéria de redução de emissões ou do enfraquecimento progressivo da EPA. Por falar em Califórnia, a forma como Trump tem reagido aos incêndios dantescos que têm varrido a zona de Los Angeles é sintomática do desprezo pela emergência climática. Apesar de os especialistas insistirem que a seca profunda do território e os ventos extremos têm contribuído para a propagação de fogos impossíveis de domar, o recém-eleito presidente limitou-se a apontar responsabilidades ao governador da Califórnia, o democrata Gavin Newsom, que apelida de Gavin Newscom (numa alusão a “scum”, que significa escumalha).

Por tudo isto, Júlia Seixas, pró-reitora da Universidade Nova de Lisboa e especialista em energia e alterações climáticas, não tem grandes ilusões. “A China é o país que mais contribui para as emissões [de gases de efeito de estufa], os EUA são o segundo. Mesmo que uma Europa e uma China se consigam entender, com o segundo país mais poluente do Mundo a aumentar as suas emissões, vai ser muito difícil almejar à neutralidade carbónica até 2050. Se já era muito difícil acreditarmos que ela seria conseguida até lá, assim fica impossível.” Quando questionada sobre o que daí pode resultar, Júlia Seixas lembra que além dos fenómenos extremos, muitas vezes “intensos e incontroláveis”, como os fogos na Califórnia ou as cheias em Valência (só para citar dois exemplos mais recentes), há outras catástrofes a ganhar forma, menos visíveis, mas irreversíveis, desde “as alterações das correntes oceânicas”, que podem mudar todo o ecossistema, ao degelo dos solos da tundra próxima do Ártico. “São solos com muita matéria orgânica que, com o aumento da temperatura, começam a derreter e a escoar, a matéria orgânica começa a degradar-se e liberta metano, um gás 20 vezes mais potente que o dióxido de carbono. Isto já está a acontecer e é algo incontrolável”, sublinha.

João Camargo, investigador em alterações climáticas e ativista do movimento Climáximo, é ainda mais fatalista. “Já ultrapassámos vários pontos de não retorno, que já estão a produzir um novo clima. Mas pode ser muito pior. Se não houver uma inversão drástica de políticas, vai haver cada vez mais fenómenos extremos, cada vez mais territórios que vão deixar de ser viáveis, onde vai deixar de haver água e onde vai deixar de ser possível produzir alimentos. No limite, o Planeta pode tornar-se todo ele inabitável. Mas, antes disso acontecer, haverá uma crise migratória inultrapassável e conflitos dentro da sociedade por causa da escassez. Antes de o Planeta acabar connosco, a espécie vai entrar numa espécie de autodestruição”. Por isso, não hesita em classificar Trump como “o general máximo de uma guerra contra o Planeta e as pessoas que nele habitam”, sendo que “desta vez tem com ele multimilionários como Elon Musk ou Mark Zuckerberg”. E não se conforma com a “aposta total na destruição do equilíbrio ambiental”. “Este mandato não pode chegar ao fim. Ou os planos deste mandato têm de ser desmantelados. Este é um momento histórico: se estas pessoas não forem derrubadas, no fim deste mandato de quatro anos vamos estar a lutar contra o colapso do único planeta habitável que conhecemos.”