
O caminho para definir o próximo orçamento da União Europeia, que se adivinha tortuoso e mais difícil do que nunca, vai começar a ser percorrido esta semana. A defesa é a nova aposta e a competitividade o mantra recitado à exaustão. Os novos tempos oferecem oportunidades, mas a coesão tal como a conhecemos está ameaçada e são inegáveis os riscos para o interior do país.
O debate pode parecer hermético e bizantino para quem não domina o jargão de Bruxelas. Quando, na terça-feira, o colégio de comissários se sentar para dar o pontapé de saída na preparação do próximo orçamento de longo prazo da União Europeia, o encontro permanecerá distante das preocupações dos portugueses. E, no entanto, as consequências para o país serão inevitáveis, sobretudo para as chamadas regiões de baixa densidade: os cestos em que a Europa investe os seus milhões estão a mudar. “A coesão tal como a concebemos não vai continuar a existir”, alerta fonte diplomática europeia. “Não podemos ficar na nossa zona de conforto e temos de nos lançar à água.”
Que água desconhecida é essa em que teremos de aprender a navegar? Para responder é preciso analisar dois desafios que convergem e dificultam a definição do quadro plurianual para o período de 2028 a 2034. A necessidade de reembolsar os 300 mil milhões de euros do Mecanismo de Recuperação e Resiliência é um deles, ao qual se junta o anunciado objetivo de investir mais em defesa. Com Donald Trump ao comando e a noção de que a Europa precisa de ganhar independência face ao velho aliado, é consensual que a segurança se manterá como tema quente, aconteça o que acontecer na Ucrânia.
Uma parte dos esforços cabe aos próprios estados, mas a conversa fica cada vez mais desalinhada quando se passa para a componente de financiamento europeu. Há parceiros que defendem a possibilidade de se ir já buscar verbas disponíveis ao programa do PRR e mesmo ao atual quadro dos fundos de coesão (o PT2030, a nível nacional). Mesmo que nenhum destes caminhos se concretize, o impacto no próximo quadro plurianual é dado como certo.
“Não tenho uma visão nada pessimista sobre as nossas perspetivas (…) Em vez de fazer rotundas, trata-se de criar emprego qualificado”
Manuel Heitor, ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e autor do relatório “Align, act, accelerate”
Manuel Heitor, ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e autor do relatório “Align, act, accelerate” (um dos três que marcaram a reflexão sobre o futuro da UE no ano passado), desdramatiza o redirecionamento dos gastos para a segurança e defesa. “Não tenho uma visão nada pessimista sobre as nossas perspetivas”, assegura, sublinhando que a defesa tem de ser encarada como um motor de competitividade e não como um fardo. O que se pretende, explica à NM, é reorientar a aposta em setores de baixa densidade tecnológica para segmentos como a aeronáutica ou a biomédica.
Menos rotundas, melhor emprego
Não é por acaso que a Comissão Europeia tem pela primeira vez um comissário para a Defesa e o Espaço. As guerras já não se fazem nas trincheiras e falar em defesa é olhar para atividades com facilidade em operar numa lógica de duplo uso, civil e militar. Trata-se de uma “reorientação total” que pode permitir usos mais transformadores dos fundos de coesão do que tem acontecido no passado, sustenta Manuel Heitor, que recorre a uma frase muito usada por estes dias nos corredores de Bruxelas: “Em vez de fazer rotundas, trata-se de criar emprego qualificado”.
A piada estereotipada das rotundas não agrada ao presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), mesmo partilhando – e já lá iremos – da fé na oportunidade que a defesa pode oferecer à região. As rotundas, sejam elas literais ou metáforas de pequenas obras, são “essenciais para criar qualidade de vida” em regiões do Interior. “Devemos dizer com clareza se queremos que as pessoas continuem a viver em concelhos com cinco mil habitantes ou se é para fechar uma parte dos territórios”, desafia António Cunha.
“Devemos dizer com clareza se queremos que as pessoas continuem a viver em concelhos com cinco mil habitantes ou se é para fechar uma parte dos territórios”
António Cunha, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N)
Por ser uma região rendilhada, exportadora mas com 80% de área rural, o Norte é um bom exemplo de que “o investimento industrial não é incompatível com um olhar específico para alguns pontos do interior”. Ou, traduzindo para a terminologia europeia, canalizar os fundos de coesão para a reindustrialização e a competitividade não pode levar ao apagamento da convergência e do apoio aos que não conseguem ser competitivos.
“Durante muito tempo a coesão era vista quase como política de caridade, mas quem beneficia são todos os quadros-membros, sem exceção”
Paulo Nascimento Cabral, eurodeputado do PSD e um dos presidentes do Intergrupo da Política de Coesão e Regiões Ultraperiféricas
Essa é a preocupação que orienta o Intergrupo da Política de Coesão e Regiões Ultraperiféricas, que acaba de ser formalizado em Estrasburgo para prevenir o emagrecimento dos fundos. O eurodeputado social-democrata Paulo Nascimento Cabral é um dos três presidentes do fórum, que reúne representantes de 18 nacionalidades e sete famílias políticas. Sem negar a necessidade de “algumas reformas”, o eurodeputado não quer ouvir falar em cortes nas fatias da coesão e da agricultura, que atualmente valem, cada uma, cerca de um terço das verbas europeias. “Durante muito tempo a coesão era vista quase como política de caridade, mas quem beneficia são todos os quadros-membros, sem exceção”, sublinha. “Ainda há poucos dias um colega romeno dizia isso mesmo, dando o exemplo das autoestradas no país que estão a ser construídas por empresas alemãs e holandesas.”
O exemplo dos Arcos
Feita a ressalva de que uma aposta em tecnologia de ponta não exclui a defesa da ruralidade, António Cunha acredita que o Norte está “razoavelmente bem posicionado” para responder às exigências dos novos tempos. Tal como hoje não fabrica automóveis, mas o que mais exporta é componentes do setor automóvel, a região “não vai fazer mísseis”, mas tem capacidade instalada para entrar nalguns segmentos. Não é por acaso, salienta, que os dois maiores investimentos em curso são de empresas aeronáuticas, a Airbus Atlantic em Santo Tirso e a Lufthansa Technik em Santa Maria da Feira. Como não é por acaso que o maior fabricante independente de satélites na Europa tem fábrica na Maia.
Outro exemplo desta mais-valia está nos Arcos de Valdevez, onde duas empresas francesas, Nexteam e Satys, trabalham em chapas metálicas e tratamento de superfícies para a aeronáutica, espaço e defesa. Depois do recente encerramento da Coindu, uma têxtil do ramo automóvel que lançou 350 pessoas no desemprego, o presidente da Câmara confirma que o “robustecimento da atividade de empresas internacionais” está a permitir recrutar muitos destes trabalhadores. João Esteves detalha que atualmente há um contacto estreito entre as empresas e os centros locais de formação, de forma a ajustar a oferta à procura. “A esta qualificação de recursos corresponde uma melhoria das condições salariais”, afirma o autarca. “É mesmo uma oportunidade de nos reposicionarmos.”
Embora Bruxelas e Estrasburgo pareçam longe, quem conseguir antecipar as decisões europeias terá maior probabilidade de êxito. Ainda que se adivinhe um calendário tortuoso e cheio de ziguezagues, em que poderemos chegar às portas de 2028 sem consensos, obrigados a salvar o orçamento com negociações de última hora. Para já, os próximos meses estão carregados de passos intermédios.

No final de fevereiro espera-se o pacto industrial, que vai clarificar as linhas da chamada Bússola da Competitividade. A 19 de março, por sua vez, é apresentado o livro branco sobre segurança, a partir do qual será aprofundado o debate sobre o financiamento e eventuais novas fontes de receita. Tem estado sobre a mesa a possibilidade de criação de taxas sobre as emissões de carbono e lucros de multinacionais, mas nalguns países este tipo de impostos já existe e há risco de perda de receitas para os estados. É também neste delicado puzzle financeiro que encaixa a criação de um mercado único de capitais, pasta a cargo da comissária portuguesa, Maria Luís Albuquerque, e que implica uma nova cultura de risco na Europa. Financiar o risco e desburocratizar são duas prioridades insistentes na cartilha europeia, sob pena de se falhar o mantra da competitividade.
Uma vez consensualizados todos estes cruzamentos, a Comissão irá apresentar a sua proposta orçamental até final do semestre e em julho iniciam-se as negociações entre o Conselho e o Parlamento Europeu. Fonte diplomática em Bruxelas assegura que Portugal está empenhado em se alinhar com as mudanças em curso: “Não adianta tentarmos encontrar uma realidade paralela, mas sim as melhores oportunidades na que existe”. A NM tentou ouvir o ministro adjunto e da Coesão Territorial sobre o tema, mas não obteve resposta.
Atento às sombras que muitos veem surgir no horizonte, Manuel Heitor insiste que este é um tempo de otimismo. A Península Ibérica tem sido o motor da economia europeia e “economias mais pequenas poderão beneficiar” com a crise dos gigantes Alemanha e França. Até a posição geoestratégica joga a favor de Portugal e escapa “à amargura que se vive a Leste”. O tempo dirá se a mudança consegue ser doce.