
Estava escrito que a música seria a sua vida, ganhou coragem, atirou-se de cabeça. Dá voz à guitarra portuguesa e persiste num caminho instrumental, acreditando que cada passo vale a pena. Estica o tempo, gosta da adrenalina de ter mil coisas para encaixar, faz caretas quando se engana, quer abrir uma escola para crianças. Dia 19 deste mês toca no Tivoli para apresentar o álbum “Sem palavras”.
Anda pelo Mundo a dar voz à guitarra portuguesa e 2024 foi um ano cheio. Mais de 50 concertos, Austrália, China, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, entre outros países. Cinco continentes, mais de 40 cidades, mais de 2500 minutos em palco, mais de 130 mil quilómetros no corpo e na alma. Não se notam sinais de cansaço durante esta conversa, horas depois de aterrar vinda da Indonésia, após uma aventura e de ter chegado sem malas.
Voo para Hong Kong, 11 horas de escala, Londres a seguir, tempestade, três voos cancelados, Lisboa por fim. Nada disso lhe importa, é apenas um rodapé, o que lhe interessa é o concerto. Fala dele, enquanto sobressai aquele contentamento e aquela indisfarçável e genuína alegria de quem gosta do que faz. “Estar a tocar com um grupo indonésio que ainda fala português através da música, juntar a guitarra portuguesa… fico muito emocionada com estas coisas.”
Tem uma vontade que não se cansa de repetir: levar o fado ao Mundo e o Mundo ao fado. “Temos o Mundo todo para fazer pontes e abraços e aprender com sonoridades novas.” Foi o que aconteceu na Indonésia e em outros lugares, momentos inesquecíveis, ora quando um violão de sete cordas se junta com a guitarra portuguesa no Brasil, ora quando se ouve fado saído de uma harmónica em Israel. “Tenho sempre muito trabalho e muito para onde ir, muito para descobrir, muitas pontes para criar. É um caminho que se vai fazendo, caminhando.”

Esse caminho começou cedo. Aos quatro anos, começou a aprender piano. Aos oito, guitarra clássica, aos 18, guitarra portuguesa e foi amor à primeira aula com Carlos Gonçalves. “Era uma personagem muito castiça, alentejano de Beja, guitarrista da Amália, todo ele era um monumento histórico.” Guitarra portuguesa surgiu por vontade do pai, apaixonado pelo fado. “Uma aula puxou outra, a vontade de conhecer e de aprender foi aumentado, e o meu pai, contentíssimo, facilitou-me tudo, as idas às casas de fado, os CD para ouvir, os guitarristas.” Aquelas cordas, aquele som, aquelas unhas. Tornou-se então o seu instrumento.
Durante o dia, curso de Engenharia Civil no Técnico. À noite, guitarrista no Clube de Fado. “Acabava as aulas e ia direta para os fados, jantava com os empregados, com o dono Mário Pacheco, com os fadistas e pedia-lhes para cantarem um bocadinho para aprender os fados”, recorda. Andou o curso todo a dizer que ia desistir, nunca o fez, terminou-o e foi trabalhar num gabinete de projetos de pontes, depois para LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil, fez investigação em engenharia sísmica, o emprego era mais flexível, já tinha dois filhos. Mas o que queria mesmo era seguir música – já a educadora de infância tinha percebido essa curiosidade por absorver tudo o que tivesse a ver com instrumentos. Em 2012, ganhou coragem, arriscou, atirou-se de cabeça.
Tudo aconteceu num desafio lançado por Rodrigo Costa Félix, seu marido na altura, para gravar a guitarra portuguesa no seu segundo disco. Sem pressão, máxima liberdade, alguns dias em estúdio, se não saísse bem, viria outra pessoa. Não foi preciso. “Pus um empenho gigante, fui ouvir todas as versões de fados que havia e que ele queria gravar no disco. A formação clássica ajudou-me a criar as introduções e os arranjos para as músicas. Foi um momento de aprendizagem muito grande, muito intenso.” Do início ao fim. Esse disco “Fados de amor” ganhou o Prémio Amália Rodrigues para melhor álbum de 2012. E o estatuto da primeira mulher a tocar profissionalmente guitarra portuguesa no fado ninguém lhe tira. Nada poderia ficar como dantes.
Quatro anos depois, em 2016, Marta lançou o seu álbum de estreia, em nome próprio. No ano passado, surgiu o segundo disco “Sem palavras” com o pianista cubano Iván Melon Lewis, vencedor de um Grammy Latino. No dia 19 de janeiro, apresenta-o no Teatro Tivoli, em Lisboa, às 21 horas. Um espetáculo sensorial e intimista, com dança e moda, um diálogo entre dois instrumentos. “Quis despir o disco, é a guitarra e o piano, não há distrações, não há coisas encobertas, sentem-se as intenções, sente-se o silêncio.”

Os batismos são complicados, admite que é péssima a dar nomes às músicas e aos discos. “Consigo criar ambientes e descrever o que sinto, mas depois resumir tudo numa ou duas palavras é muito difícil.” O nome “Sem palavras” até pode ter sido difícil, mas encaixa nesta fase, confessa. “É um disco sem palavras, mas que diz muito, não tem um tema cantado, a guitarra é a voz do projeto. A guitarra, em cada intenção, em cada nota, procura dizer tudo aquilo que sinto e que quero passar.” A música “Sem palavras” é dedicada aos filhos, a “Memória” é uma homenagem à avó materna Maria Helena, que já partiu, das memórias doces que guarda dela.
No palco, com o tempo, aprendeu a relaxar. “Acho que descobri que a fórmula é não querer ser mais do que aquilo que sou. Sou o que sou agora, é isto que partilho, é o que sou com toda a minha humildade” Quando se engana, faz caretas, a mãe já a avisou tantas vezes. Marta ri-se e não se importa. “É como eu sou, percebendo que posso ser como sou, não tenho complexos, não quero ser mais do que sou, não quero tocar mais rápido como outros guitarristas, toco à velocidade que toco e, portanto, é uma liberdade muito grande.”
Maria-rapaz na escola, as viagens que são passeios
A maria-rapaz na escola, guarda-redes de andebol, fez equitação, bodyboard, ski aquático, jogou voleibol e futebol com rapazes da turma e com a equipa feminina na universidade, se pudesse, teria aulas de música a vida toda, nessa ânsia de aprender e ver estímulos a cada desafio. Mesmo que fique sem pé ou o tempo seja curto para se preparar, não diz que não para absorver tudo o que estiver ao alcance. “Experiências de cruzamentos, de sonoridades, de influências, e aprender.”
Marta persiste num projeto instrumental. “É necessário dar esse espaço à guitarra portuguesa, o mestre António Chaínho já o fazia.” Sabe, porém, que é complexo. “Cá, em Portugal, não é tão fácil passar nas rádios, não é tão fácil ir aos programas fazer promoção”, repara. É preciso educar e contrariar este paradigma, defende. “Mas sou muito teimosa, vai custar mais, vai-me sair do pelo, mas a guitarra portuguesa vai, um dia, ter destaque, como fazia Carlos Paredes. A guitarra portuguesa ainda tem esse caminho para conquistar e para ganhar esse estatuto de instrumento solista tradicional de Portugal.” Não desiste, promete. “A guitarra tem papéis distintos quando está a acompanhar e quando está a ser voz e tem de se respeitar isso. Quando está a ser voz, a linguagem é outra, o espaço é outro, enquanto a guitarra como solista está livre de brilhar, de se expor.”

Há muitas viagens na sua cabeça e as suas músicas são convites para passeios. O tema “Terra”, do primeiro disco, é uma viagem por Portugal de norte a sul, pela diversidade do país, da culinária, das paisagens. “Movimento” transmite o andar da água, de um rio. “Tem um movimento inconstante que depois vai acabar numa calmaria, que considerei ser o mar parado. “Tempo parado”, do novo disco, é o tempo da pandemia. “Há uma parte que começa um pouco angustiante, que passa pelos conflitos que todos vivemos, mas depois vem um tempo de oportunidades, de criar soluções e de sabermos ultrapassar. Também há viagem nesse tempo.”
Nesse 2024 intenso, no dia 24 de abril, Marta tocou na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, para celebrar os 50 anos do 25 de Abril, a convite da missão de Portugal na ONU. “Foi uma experiência marcante, muito especial”, conta. A solo, ela e a guitarra, um repertório tradicional da guitarra com referência às músicas do 25 de Abril, preparado para a ocasião. Meses antes, em novembro de 2023, atuou no Tiny Desk, reputado e famoso projeto da NPR Music (National Public Radio), plataforma que disponibiliza música para mais de mil rádios nos Estados Unidos. Agarrou o convite, sabia da importância e da projeção desse momento. Assim foi. “Abriu-me portas para o Mundo, recebi muitos convites depois desse programa.”

Anda com a guitarra pelo Mundo, tem tocado mais fora do que dentro do país. “Fico um pouco triste porque quero tocar cá, quero tocar para as pessoas de Portugal, e realmente as portas não se abrem com tanta facilidade.” Não desanima, acredita em oportunidades. E em sonhos.
Um deles é abrir uma escola de música gratuita para os mais novos. “Sei que vai transformar as nossas crianças e formá-las para um futuro muito melhor porque o segredo está na educação.” Não é para já, precisa ganhar mais estabilidade e nome para avançar com o projeto com amigos, professores, patrocinadores. “Ajudar, à minha escala”, comenta. Com a música, sempre a música.