Júlio Isidro: “Fiz sempre o culto da diversão inteligente”

É um dos nomes maiores da comunicação, da rádio e da televisão, criador de programas marcantes como Febre de Sábado de Manhã e Passeio dos Alegres. Inventou passatempos, meteu 27 pessoas num mini. Descobriu António Variações e muitos outros talentos. Entrevistou as maiores celebridades de Hollywood. Tem 80 anos, feitos este mês, e 65 de RTP assinalados quinta-feira passada. Mantém a timidez e a alegria de fazer. É modesto, mas não humilde. Continua a trabalhar e a esticar os dias. Com imenso prazer.

Nasceu em Lisboa numa família conservadora. Tinha 15 anos quando se estreou na RTP e 18 quando fez a sua primeira emissão no Rádio Clube Português. Nunca mais parou. Profissional dos sete instrumentos no ofício de comunicar. Fez de tudo. Criou, escreveu, editou, sonorizou, animou programas musicais, fez reportagem, produziu, entrevistou, realizou, apresentou. Reinventou a arte do entretenimento, deu palco a muitos talentos. Mediu narizes com Dustin Hoffman, deu dois beijinhos a Julia Roberts, ficou às escuras com Jamie Lee Curtis, tomou chá com Meryl Streep.

Continua no ar. “Inesquecível”, na RTP Memória, faz 14 anos em março. “Hotel Califórnia”, na Renascença, vai na oitava temporada. Prepara o segundo e último volume da sua autobiografia e burila livros infantis para editar. Constrói aviões desde miúdo, agora numa oficina na cave de casa. Encontrámo-nos na RTP num dia intenso (o seu grande amigo e braço-direito António Barra, Barrinha como lhe chama, estava a morrer), a conversa durou mais de duas horas. Dirá quase no fim: “A popularidade é uma coisa efémera, é uma faca de dois gumes, um oásis virtual”.

Como é que um miúdo tímido se torna num dos maiores nomes da televisão?
O palco, as câmaras, as luzes em cima dos olhos, são o meu divã de psiquiatra.

É aí que descontrai?
É ali que minto a mim próprio.

Como assim?
É ali que sou outra coisa que não sou exatamente na vida real, muito embora, felizmente para mim, acho que a minha imagem corresponde àquilo que sou como pessoa. Mas o fulano com senso de humor, com gracinhas, não é rigorosamente o menino tímido que continuo a ser, cá dentro de mim, no meu dia a dia.

Dizia que ontem, um domingo, escreveu dois guiões, hoje tem o dia cheio, amanhã duas gravações. Como consegue esticar o tempo?
Com uma fórmula que encontrei para mim próprio. Eu vivo a empurrar-me pelas costas. Com esta idade, justificar-se-ia que me levantasse sem projeto. Se assim fosse, dentro de muito pouco tempo, o único projeto seria o velório. O ideal é fazer o que faço, empurrar-me a mim próprio.

O que o fascina nessa arte de criar programas, escrever guiões, inventar passatempos?
A ideia de divertir os outros, que as pessoas se sintam divertidas, não têm de ser estupidificadas, muito pelo contrário. Fiz sempre o culto da diversão inteligente que faz com que as pessoas consigam manter em qualquer idade, em qualquer situação das suas vidas, uma luzinha de juvenilidade pelo menos e de jovialidade também.

Tal como escreve na sua autobiografia: “Entreter sem estupidificar, divertir sem alienar”.
Tem graça, nem me lembrava que já tinha dito isso. Mas é verdade.

Há exatamente 45 anos, estreava o programa de rádio “Febre de Sábado de Manhã” na Rádio Comercial e foi uma loucura. A primeira emissão foi numa discoteca, depois passou para o Nimas.
Numa discoteca com cheiro a tabaco e a perfume barato.

Júlio Isidro acaba de assinalar 65 anos de RTP. Continua na televisão com o programa “Inesquecível” na RTP Memória (Rita Chantre)


Revolucionou o que era fazer rádio, ao vivo e em direto, com talentos que se tornaram grandes nomes da música, encheu o estádio de Alvalade. Que febre foi essa?
Mais do que um programa, foi um acontecimento social, um caso único de mobilização. Não tinha noção da dimensão que iria atingir. Tive a ideia de dizer ao meu diretor para fazer um programa todos os sábados das 10 às 13 horas ao vivo num palco. “Pois, Júlio, mas tu já fazes a ‘Grafonola Ideal’”, programa que fazia todos os dias das 10 às 13 horas. “Queres trabalhar seis dias por semana?” Quero. “Olha, não há dinheiro”, que é uma coisa que tenho ouvido toda a minha vida.

E acredita?
Nem sempre acredito, mas aceito. Disse-me “não há dinheiro, a única coisa que te podemos pagar são três horas extraordinárias ao sábado”. O entusiasmo era tão grande, sim senhor, vou fazer. Queria fazer no Nimas, propriedade da Rádio Comercial naquela altura. Não sei como é que cheguei a essa boate, fiz a estreia com um concurso de noivas – noivas naquele sítio era engraçado. Na semana seguinte, fiz no Nimas, que levava 180 pessoas. Ao fim da segunda semana, tinha 360 pessoas, já se sentavam dois na mesma cadeira. Ao fim de pouco tempo, já se sentavam também nas coxias centrais e laterais. Num palco de cinema, que não tinha muito fundo, apenas uma cortina em cima do ecrã, dois camarins, fizemos coisas extraordinárias com estreias dos maiores nomes da música portuguesa e internacional.

Chegou a ter pedidos de artistas como Chris de Burgh, Sheena Easton, Gilberto Gil, Spandau Ballet, que queriam ir ao programa.
Couberam lá todos. As célebres Frenéticas, um grupo de cinco mulheres brasileiras criaram um sururu extraordinário. Até fizemos uma parte do programa muito interessante dedicado à Gabriela, com a própria no palco.

O país tinha sede de um programa assim?
Apercebi-me intuitivamente da sede que depois foi comprovada. No programa “Grafonola”, saía quase todos os dias, deslocava-me para um sítio de Lisboa, inventava uma coisa qualquer e as pessoas iam lá. Num dia de muito frio, fizemos o concurso de quantas camisolas levam vestidas, tipo pastel de mil folhas. Tenho fotografias de fulanos que parecem o anúncio da Michelin gordíssimos, cheios de camisolas.

Depois, em 1981, prepara o “Passeio dos Alegres” em dez dias. Inspira-se no passeio dos tristes, família no carro, relato da bola no rádio. E cola o país à televisão aos domingos à tarde.
A Maria Elisa apercebeu-se do sucesso da “Febre de Sábado de Manhã”, telefonou-me, fui falar com ela, diz-me que tem cinco horas ao domingo de televisão para fazer, se tenho alguma ideia. E eu, que muito mais do que ideias tinha vontade de trabalhar, digo tenho sim. Ideias só trago escritas, é uma fé que tenho porque gosto de deixar as coisas escritas. Era segunda-feira, na quarta apresentei-lhe o projeto já com o nome. Era o contrário do passeio dos tristes. Começámos a ter reuniões, imediatamente surgiu o cenário, um chapéu de sol, uma mesa de acrílico transparente, e um telefone, ainda não havia telemóvel, que, apesar de tudo, já era portátil e que à segunda emissão foi proibido pelos serviços radioelétricos.

Continuou a inventar passatempos, os visuais mais futuristas, os mais altos e os mais baixos, os cabelos mais compridos, os pés grandes, o Beatle mais Beatle, os novos marretas, o playback em que as pessoas se podiam vestir do seu cantor favorito e cantar. Era toda uma nova forma de entretenimento como tinha feito na rádio?
Simplesmente agora podia fazer coisas mais visuais, tinha essa enorme vantagem. Um dos mais fascinantes foi quando trouxe cá o Travadinha, extraordinário músico que tocava rabeca em Cabo Verde, nunca tinha vindo a Portugal. Levo-o ao programa, ele de óculos escuros, pergunto-lhe qual o maior desejo que tem na vida, diz que gostava de ter uma telefonia. Talvez se arranje. Pus o Travadinha a fechar o programa, naquele espaço de três horas, recebi, não quero exagerar, 100 telefonias. O Travadinha entrou, apaguei-lhe a cena, e enchi o chão do estúdio à frente dele com os 100 rádios. “Há bocadinho disse-me que queria ter um rádio”, acendemos as luzes, “então agora escolha”. Ele ficou mudo. Isto revela muitas coisas, o civismo nacional, a generosidade, a solidariedade. Eram esses os valores que a minha mãe e que o meu pai me foram metendo na cabeça. O meu pai era de um rigor ético, até incomodativo, às vezes.

À esquerda, a última atuação de António Variações na televisão. Foi na RTP, pela mão de Júlio Isidro, que o cantor se apresentou ao país, no “Passeio dos Alegres”, a 3 de maio de 1981. À direita, o “Fungagá da Bicharada” com José Barata Moura


O que diziam os seus pais quando o viam na televisão?
Nada. O meu pai nasceu em 1911, a minha mãe em 1920, os códigos sociais eram completamente diferentes. O meu pai era mesmo o chefe da família, sendo que a minha mãe é que era a gestora, o primeiro-ministro.

Foi no “Passeio dos Alegres” que o país ouviu, pela primeira vez, “Eu vi um sapo” de Maria Armanda, o Herman José como Tony Silva e menino Nelito, o nascimento do Avô Cantigas, António Feio em momentos de humor. E tantos outros. Como era assistir a estas pérolas em primeira mão?
Era ter a perceção de que era uma estreia irrepetível. Tínhamos na RTP, às quartas-feiras, teatro, caía o pano e acabava, a peça acontecia só uma vez, o que é um frisson muito especial. Eu gostava de fazer coisas que fossem irrepetíveis.

Paremos no dia 3 de maio de 1981. António Variações estreia-se no “Passeio dos Alegres”. Ele corta-lhe o cabelo, dias depois entrega-lhe uma cassete, percebe logo o que ali está?
Corta-me o cabelo e diz-me “eu faço umas cantigas”. “Tem alguma coisa gravada?” “Não tenho, mas gravo.” Encontrei-o por mero acaso. A Isabel Queiroz do Vale tinha um contrato com a televisão, eu cortava o cabelo no meu barbeiro, mas naquele dia fui lá. Três dias, no máximo, estou num restaurante, ele entra pela porta com uma samarra alentejana e com um cajado na mão, “tenho aqui a cassete”. Pedi-lhe o número de telefone, fui para casa ouvir. Telefonei-lhe logo, “achei isto uma coisa muito engraçada, você quer ir à televisão? “Quero.” “Então vá à reunião de produção na próxima quarta-feira.” Quando entrou na sala de produção, ficou tudo esbugalhado. Quem é este fulano? O guião tem cinco horas, é dinâmico, tiramos esta rubrica, mantemos outra, mas com este rapaz. Como é que se chama? António. Só António? Variações. Não sei se ele se batizou naquele momento. Fiz a emenda no guião e aqueles 15 minutos foram para o António Variações.

Ele perguntou-lhe como teria de ir vestido?
Não, disse-me que ia vestido à maneira dele. Ele e o conjunto também vestido de forma bastante original, um deles estava de tutu de bailarina clássica.

O país via, pela primeira vez, António Variações. Se não tivesse percebido o que estava na cassete, provavelmente Variações não teria acontecido.
Naquela altura, não, mas penso que inevitavelmente, um dia, iria acontecer. Terei precipitado os acontecimentos. Foi um boom de tal maneira, para o bem e para o mal. Nem toda a gente deve ter achado muita graça. Quem é este fulano com umas calças aos quadrados pretos e amarelos? Que música é esta?

Precipitou muitos talentos.
Em termos internacionais, não fui eu que pedi para cá virem os Duran Duran ou os Spandau Ballet, vieram porque se ofereceram. Há um caso ao contrário, em que fui eu que pedi, um acordo que fiz com a minha querida Joan Baez. Veio atuar ao Pavilhão Dramático de Cascais, fui assistir, no final pedi ao produtor para cumprimentá-la. “Diga-me uma coisa, tenho um programa de televisão todas as tardes de domingo em direto, gostava tanto que você lá fosse, mas não tenho dinheiro para lhe pagar.” E ela disse “não é essa a questão, é que costumo fazer o meu treino todos os domingos”. “Precisa de um ginásio? Arranjo-lhe um.” Como eu fazia ginástica no Ginásio Clube Português, liguei ao presidente que responde “com certeza”. Fui com ela, tomou o seu duche, levaram-na ao programa, atuou à borla.

Inventou vários passatempos para os seus programas. Quantos cabem num Mini, os mais altos, os mais baixos, e “Papel Químico”, em que as pessoas se vestiam e cantavam como os seus cantores favoritos


Voltou a ver esses programas?
Os programas “Passeio dos Alegres” foram todos apagados. Eram gravados sempre em cima da mesma cassete para poupança, ficou o último. Andei três anos e ficou o último. Acabei de editar uma reportagem feita pela informação da RTP, uma peça de seis minutos e 20 segundos para o noticiário, sobre o “Passeio dos Alegres”. Via-a agora pela primeira vez na minha vida, as reuniões, alguns artistas a ensaiarem, atuações. O locutor Carlos Franco diz que a tarde de domingo tinha centenas de milhares de espetadores e oito semanas depois tinha três milhões e meio.

O passatempo “Quantos cabem num Mini?” foi falado em quase todo o Mundo.
Vi, há pouco tempo, também no arquivo da RTP, a televisão japonesa a dar notícia do Júlio Isidro, em japonês, que tinha metido 27 fulanos num Mini. Através da Eurovisão, várias estações fizeram notícia disso.

Depois do sucesso do programa, com o qual deverá ter feito bom dinheiro, decide tirar um curso de televisão e cinema nos Estados Unidos. Podia ter comprado uma casa na praia e um carrão.
Eu tinha um Citroën Visa, depois comprei o Visa Tonic, que era um bocadinho mais artilhado, até um dia comprar um Citroën um bocadinho maior. Houve uma altura em que pensei, acho que sabes alguma coisa de televisão, mas sabes muito pouco comparativamente com o que se usa lá fora, e inscrevi-me na Universidade da Califórnia de Los Angeles para fazer o mastergrade de produção de televisão, realização de televisão e de cinema.

Que terminou com nota máxima.
Exatamente. Fui com todo o dinheiro que tinha ganho ao longo dos programas. Ganhava 20 contos, não pensem que ganhava uma fortuna. Tive sorte, consegui arranjar uma parte de casa numa moradia luxuosíssima.

Dormia à sombra das letras de Hollywood.
Não podia estar melhor. Era o último piso com direito a jacuzzi, que era um casal de médicos famosíssimo em Los Angeles. E aluguei um carro dos anos 1950, não tinha mais dinheiro, que tinha a vantagem de mudar de três em três semanas. O que não me dava prestígio. Ia visitar as grandes produtoras, entravam grandes carrões das vedetas e depois eu com um carro dos anos 1950, um deles tinha o forro do teto a cair-me em cima da cabeça.

Faz grandes entrevistas, Scorsese, Copolla, Richard Gere, Harrison Ford, BB King, Mel Gibson, e tantos outros.
Fiz tudo quanto era possível. As editoras, em Portugal, tiveram a amabilidade de informar as editoras dos Estados Unidos de que eu estava lá. A partir daí, tinha convites todos os dias.

No cinema, quase não lhe falta ninguém.
Faltam-me alguns.

O Jack Nicholson?
Ele estava numa mesa num sushi bar, do outro lado, mas nunca tive lata de me aproximar. A Susan Sarandon terminou a entrevista com as pernas em cima das minhas. A determinada altura, ela tira os sapatos põe as pernas dela em cima das minhas, fiquei um bocadinho tenso, e ela diz-me “sabe uma coisa, eu sou a sexy symbol mais velha de Hollywood”. Achei-lhe muita graça. Gostava muito de ter entrevistado o Robert de Niro.

Na foto, no “Programa Infantil”, onde se tinha estreado na RTP a 16 de janeiro de 1960, com Maria João Metello no concurso “Certificados de Aforro”. Júlio Isidro tinha 15 anos quando se estreou na televisão e ensinava a construir aviões, automóveis, barcos, submarinos, na rubrica “Mãos à obra”


Esteve cá há pouco tempo…
Mas levou uma injeção de entrevistas e de pessoas encostadas. Não fui lá, acho que tem de se ter algum pudor.

Estamos na RTP, onde se estreou há precisamente 65 anos no “Programa Juvenil”, com um casaco azul-escuro com botões dourados e sapatos de camurça emprestados pelo seu primo. Tinha 15 anos, recebia 200 escudos de cachê. Com essa idade, seria difícil imaginar tudo que viria a seguir?
Eu queria ser tudo, menos isto. Simplesmente, foram-me achando alguma graça e, sobretudo, alguma competência, enquanto o João Lobo Antunes queria ser aquilo que foi, um grande cientista e neurologista, a Lídia Franco queria ser atriz.

É um ator eternamente adiado?
Sim, de alguma maneira. Achava graça fazer umas rabulazinhas. Fui ficando, particularmente porque fui o único que, logo no princípio, comecei a escrever ideias para os programas. Depois convidaram-me para fazer um programa infantil, e havia os fantoches, ofereci-me para fazer de fantocheiro. Era o tempo em que a RTP1 tinha, à tarde de domingo, três horas dedicadas só às crianças. Pré-história, obviamente.

Era um miúdo criativo, montou um comboio fantasma no pátio do prédio, inventou uma máquina de projetar cinema. Fazia de tudo e nunca parou, pois não?
Fiz tudo e mais alguma coisa. A minha mãe é que me denunciou em conversa comigo: “O que tu fazes em televisão é o que tu fazias em casa”.

Sentiu a televisão como a sua casa?
Não posso considerar a minha casa, porque vivo na televisão numa casa alugada.

À consignação, como costuma dizer?
Embora seja, nesta altura, um privilegiado porque, de há uns cinco anos para cá, o meu contrato é anual.

Nunca tentou entrar nos quadros da RTP?
Passe a imodéstia, até me posso orgulhar desse facto. Há largos anos, fui convidado com o António Reis e o António Macedo para sermos um triunvirato da direção de programas. Eu tinha a parte do entretenimento (nunca foi diretor de programas por inteiro, tinha um terço), o António Reis a da cultura, o António Macedo a da ficção. Em determinada altura, com as mutações que acontecem, aquele triunvirato acabou, surgiu outra administração, e o formato habitual, um diretor de programas. Eles dois ficaram, porque já tinham bastante tempo, como funcionários, e eu não quis aceitar essa situação. Não quero ficar por arrasto, não vale a pena. E, portanto, fiquei sempre a navegar à vista.

O que é o que o chateia no dia a dia?
Ao nível da minha área, a ideia de que as pessoas são perenes, os que se julgam eternos, a ostentação. Aborrece-me violentamente porque um dos maiores elogios que me podem fazer é dizerem que sou modesto. Não sou humilde, mas sou modesto.

A palavra vedeta repugna-o, como já disse.
Uma vez, num jantar, vem ter comigo um colega britânico, que já devia ter bebido algumas cervejas, pôs-se de joelhos à minha frente e disse-me: “Júlio, não sabia que eras uma estrela”. Respondi: “Continuas a não saber, não sou, vai lá beber mais umas cervejas que isso passa”.

Entrevistou praticamente todas as celebridades de Hollywood, onde estudou cinema e produção de televisão e cinema. Falta-lhe Robert de Niro (Rita Chantre)


Deve ter ouvido, várias vezes, que era um lírico, até pelas ideias que tinha. Uma crítica que lhe sabe a elogio?
Dizerem que sou um lírico é um elogio. Para os pragmáticos, para quem a conta bancária é muito importante e mais o cargo e isto e aquilo, provavelmente ser lírico é ser alguém que não sabe tratar de si e da sua vidinha. Eu trato da minha vida de uma forma intuitiva.

Se pudesse parar o tempo num instante, num momento, num dia ou num ano, onde gostaria de regressar?
Íamos falar de felicidade. Penso que no período da “Febre de Sábado de Manhã” e do “Passeio dos Alegres”, vivia em felicidade. Tinha a garantia de trabalho, algum dinheiro de bolso, muitos amigos, uma relação de trabalho que sempre tive com toda a gente – aqui dentro da televisão não há ninguém com quem eu me dê mal, até os mais novos vêm ter comigo e cumprimentam o tio Julião. Com uma equipa tão pequenina de produção, fui muito feliz nessa altura. A luta que tive para me afirmar não a consegui ganhar, foi só o tempo que a ganhou. Só agora, velho, porque sou um velho, não há outra palavra para me definir, é que tenho tanta consensualidade, tanto carinho, e tanto respeito. Em muitas ocasiões, dentro desta casa, fui subestimado, esquecido, ostracizado. Depois que ganhei cabelos brancos, e comecei a fazer outro tipo de televisão, as pessoas, aqui dentro, passaram a ter-me mais carinho, mais afeto.

O desfecho até poderia ter sido outro. Logo no início, quando tinha 15 anos, passou todos os testes e entrevistas e dizem-lhe que não tinha lugar por razões estéticas…
Era o mais feio.

A mesma pessoa também lhe pede para encurtar o nome.
O mesmo produtor que disse que eu não entrava porque era feio – e que, mais tarde, veio a fazer um ato de contrição, adorava-me, o Melo Frazão, que se intitulava a minha tia velha porque estava sempre a ralhar comigo -, diz-me “Júlio Isidro do Carmo não pode ser, é muito grande, tens de cortar, vais passar a chamar-te Júlio do Carmo”. E eu disse, com ingenuidade, “Júlio do Carmo não, pareço filho da fadista Lucília do Carmo”. Conclusão, ele queria que eu fosse irmão do Carlos do Carmo. Preferia ser Júlio Isidro, então fica Júlio Isidro.

Escreveu na sua autobiografia: “Sou aquilo que as circunstâncias determinaram, acrescidas de algumas decisões intuitivas”. Este poderia ser um resumo da sua vida?
Tal e qual. Tenho imensa dificuldade em perder um tempo a elaborar uma estratégia de vida, acho que nunca o fiz. É tudo um bocadinho intuitivo.

Se tivesse uma bola de cristal, o que teria curiosidade de espreitar no futuro?
Penso todos os dias na finitude da vida, no que é que isso significa, o que é esse escuro ou esse claro. O que gostava era imaginar um Mundo onde um rico não tivesse de ser rico à custa de não sei quantos milhares de pobres. E não pensem que isto é qualquer ideologia, não me atribuam à esquerda, à direita ao centro, eu sei o que é que sou. Qualquer pessoa com o mínimo de perceção humanista deve sentir que o Mundo seria muito melhor se 1% das pessoas não tivesse 90% da riqueza do Mundo. Na bola de cristal, imaginar um Mundo que provavelmente não existirá.