Valter Hugo Mãe

Jorge


Passaram agora 25 anos desde a morte do meu pai e o tempo não pode nada contra a sua ausência nem sobre o seu exercício quotidiano. O meu pai, à distância toda da morte, continua a rir por ganhar nas damas e no xadrez, continua a torcer o nariz aos políticos na televisão, espera pela sopa como quem espera um documento para assinar, trata da ironia, do cansaço e acha que lhe vai dar uma doença. A toda a hora isto é real, concreto, e responde a qualquer questão como se ele mesmo ainda usasse corpo. O grande mistério é esse, os mortos não usam o corpo mas, exceptuando isso, podem seguir na mais pura normalidade, imiscuídos em nossas vidas como sempre. Até abelhudos, capazes de espreitar sobre nossos ombros nos lugares mais secretos e inesperados.

O meu pai vai morrer todos os dias enquanto eu estiver vivo porque é isso que a morte faz, mas fá-lo exactamente porque nunca o pode esgotar. Por mais obstinada, cruel e gorda, a morte nunca o leva por inteiro. Por ser assim, investe sem sucesso. Por mais que morra, também vive. E serve para tanta coisa. O meu pai serve para tanta coisa que nem dá para contar. Na verdade, o meu pai será sempre uma abundância.

Todos os pais, até os que morreram, servem para o dia-a-dia. O meu é incansável, a trabalhar para que não nos falte nada, sobretudo juízo e alegria, sobretudo segurança e um sentido, como se fosse na meta e nós descobríssemos o plano de todos os mapas a partir de seu aceno. Com o tempo, sei bem o que responde a cada pergunta. Até melhor do que quando estava vivo, porque era com a mania das graças e tornava-se equívoco e demorado. Com a idade, o meu pai ficou menos disperso e bastante mais concreto. Rigoroso. Tem menos paciência para desperdícios. Este mesmo mês será também o seu aniversário de nascimento e considero que atravessa os 80 com uma paz que não lhe conhecia. Alcançou uma paz que me deixa até orgulhoso. O meu pai envelhece muito bem.

Deixamos de andar com a tristeza pela mão. Essa é a aflição dos aprendizes. Quem vai maduro nestas coisas sabe que todo o amor é uma glória e toda a glória se põe ao peito mais forte e mais fértil do que o Sol. Somos como os Cristos, temos o coração sagrado por sabermos amar e por termos sido amados. Se fôssemos eléctricos haveríamos de ter o peito num feixe de luz mais deslumbrante do que mil cisnes a chegar do Sul.