Dedicam-se à pintura, à olaria, à feltragem, à tecelagem. Nelas, encontram prazer e conforto e ainda aprimoram o foco e a criatividade. A procura por atividades manuais e artísticas segue em crescendo entre os mais novos e a culpa até pode ser do digital.
Francisco Sousa, oito anos, anda às voltas com uma bola de barro gigante, amassa e volta a amassar, faz dela gato-sapato, o prazer que tira disso é percetível à légua e ele faz questão de o verbalizar. “Isto é mesmo satisfatório!”, partilha com os parceiros do lado, também eles embrenhados nos pedaços de barro, com grande galhofa à mistura. Estão sentados à volta de uma mesa azul, longa e baixinha, ao todo são 13 crianças, têm entre seis e dez anos, vieram para uma oficina de férias do Claraboia Atelier, no Porto. Primeiro, houve uma exploração livre do barro, agora é-lhes pedido que criem uma composição sobre o mar, com total liberdade criativa. “A ideia é ser algo espontâneo e intuitivo, é que cada um encontre o seu espaço e possa expressar o seu inconsciente, que é o contrário do que se pede na escola”, resume Catarina Claro, pintora e arteterapeuta que em 2017 transformou o anexo que tem no jardim de casa num ateliê de expressão artística para crianças. Também por isso, a autonomia é promovida ao máximo, os materiais estão dispostos sobre a mesa, pedaços de barro, rolos da massa, peixes que servem de moldes, palitos, ferramentas, cola, pincéis, a ideia é que todos usem o que lhes der na gana, para chegarem à composição que a vontade ditar. “Se tenho tudo balizado, nunca percebo o que é realmente meu, qual é a minha essência. E nota-se muito isso quando chegam cá, perguntam o que é suposto fazer, estão sempre à espera de uma orientação. Estas atividades são também uma forma de autodescoberta.”
Francisco apostou num peixe com bolhinhas a sair-lhe da boca, primeiro desenhou com um palito, agora está a colar o barro escuro, para que o peixe se evidencie face ao quadrado cor de tijolo. Quando lhe perguntamos o porquê de ser tão “satisfatório”, responde, despachado: “Mexe, tu vais ver.” Depois, tenta explicar melhor. “Já fiz uma oficina das emoções e ensinavam a tirar a raiva. Acho que isto me ajuda nisso.” Já veio várias vezes e nunca dá o tempo por mal empregue. “Quando venho fico feliz e com vontade de fazer outra vez.” E a mãe toda contente: “É um espaço espetacular e faz-lhes bem ter assim uma atividade que não seja orientada.” Na outra ponta da mesa, Luísa Prata, de nove anos, dá largas à imaginação. Na “tela” de barro que tem pela frente, há uma onda bem delineada em tons de branco, um peixe e uma estrela-do-mar. “Já tinha experimentado noutros anos e quis voltar, gosto muito de trabalhar o barro, de mexer com as mãos, é relaxante”, confessa, enquanto avança meticulosamente. Eva Mayor, de sete anos, vem desde os dois, a mãe, Inês Oliveira, que também é das artes plásticas, sempre a incentivou e o bichinho passou. “A Eva adora, sempre que lhe digo para vir é uma prenda. Virmos aqui foi a surpresa de hoje no calendário do advento.” A filha parece querer aproveitar cada momento, está muito concentrada, primeiro usou os moldes de peixes para marcar o barro, agora vai aos poucos cobrindo os rebordos. “Gosto de amassar e de moldar o barro para as formas que eu quero.”
Às tantas, os garotos vão terminando os trabalhos. Sem que haja indicações para isso (a tal premissa de a atividade ser um convite à espontaneidade), uns quantos começam a juntar água à argila, ela transforma-se então em tinta e o espaço de trabalho passa da longa e baixinha mesa azul para a gigantesca tela improvisada na parede. “A ideia é seguir as necessidades do grupo e apenas conter, se houver necessidade disso”, reforça Catarina Claro. E nisto, enquanto uns ainda andam de pincel na mão, a pintar golfinhos e peixes ou simplesmente a marcar as mãos na parede, há quem se dedique a espalhar o barro pela mesa, transformando as bolas de argila em enormes manchas castanhas. “Isto é uma necessidade a ser suprimida, é algo catártico”, contextualiza a mentora do ateliê. Sem a ouvir, uma das meninas exprime a mesma ideia: “Não sabemos o que estamos a fazer, mas sabemos que é confortável.” Catarina sorri, com ar de missão cumprida. “O que quero é perceber o que vem de dentro, promover o reforço da identidade, prefiro sempre o real ao bonito.”
Marisa Gouveia, psicóloga do Núcleo Casa, projeto dedicado à psicologia da educação, vê várias vantagens em “crescer com arte”. “Desde logo, a capacidade de nos expressarmos, o encontro com as emoções. E é importante as crianças perceberem que são capazes de criar coisas novas. O confronto com todas as possibilidades que a arte dá, o facto de as poderem explorar de forma segura e lúdica, é fundamental.” Os efeitos benéficos podem potenciar-se ainda mais no caso de “crianças com dificuldades ao nível da interação social”, salienta Marisa. “Estas atividades promovem o contacto com outros miúdos e as crianças acabam por desenvolver competências sem perceber que o estão a fazer, a arte também pode ser um facilitador social.” A especialista elenca ainda outras vantagens: “O desenvolvimento do autoconceito e da autoconfiança. Muitas crianças, em parte por causa da escola, têm muito medo do erro e da falha e isto pode ser treinado. Na arte, não existe a pressão do bom e do mau, posso ensaiar a minha expressividade sem medo de errar. E a criatividade é fundamental para o dia a dia. O problema é que procuramos encaixotar as crianças e matamos a criatividade.”
Foi a “desilusão” com a diminuta aposta das escolas no ensino pela arte que levou Solange Cardoso a abrir o seu próprio espaço, depois de 16 anos a trabalhar como educadora. Aconteceu há mais ou menos três anos, para tornar o sonho possível escolheu uma casa com um espaço exterior que lhes permitisse montar um ateliê próprio, nasceu assim o Aquarella Atelier, uma ampla casa de madeira erguida no terreno contíguo à casa que tem em Valadares (Vila Nova de Gaia), um espaço pensado para ser “ele próprio, um educador de infância”. “Desenhei o ateliê de forma a que a criança, quando aqui entra, possa explorar por si mesma”, esclarece. Solange inspirou-se na filosofia pedagógica Reggio Emilia, que advoga a experiência com todo o tipo de materiais e o recurso aos cinco sentidos. Por isso, têm inúmeros materiais de pintura à disposição, dos marcadores Posca ao acrílico, do guache aos lápis de cera, da tinta da china ao pastel de óleo. E há estantes de onde os pequenos podem resgatar materiais, brinquedos, diferentes tipos de papel. E uma cama suspensa com escadas ladeada de livros. E há mesas de luz e bancos acessíveis a todos. Além de incontáveis desenhos afixados pela parede. Em tempo de aulas, durante a manhã, Solange (com a ajuda de uma auxiliar) recebe bebés. Depois, há as oficinas regulares de pintura, para os mais crescidos.
Visitámos o Aquarella numa terça-feira amena de dezembro, é um espaço muito airoso e bonito, o grupo tem 14 miúdos ao todo, mas, à conta das festas de Natal das escolas, está particularmente desfalcado. José, de quatro anos, Carolina e Beatriz, de seis, João e Alanis, de oito, e Alice, de dez, estão parcialmente deitados no chão, rodeiam uma folha branca com desenhos. O mote da oficina é o pintor espanhol Joan Miró, primeiro andaram a ver as obras dele e a desenhar os símbolos mais marcantes das suas obras no papel, agora estão a atribuir números a cada um deles e preparam-se para lançar os dados. Consoante o número que sair, vão desenhar um dado símbolo na enorme e colorida tela assente na parede, pintada por eles, com recurso a guache, ao longo das últimas semanas. Magali Marinho, artista e professora responsável por orientar os pequenos Mirós, acaba de explicar as regras, lançam por fim os dados, sai a lua, levantam-se e vão todos enfeitar a tela gigante com pequenas luas. “A ideia é promover a exploração artística, o contacto com obras de arte de grandes artistas, fomentar a expressão e o desenvolvimento pessoal, a construção da sua pessoa”, sublinha.
Às tantas passam todos para a mesa, agora o desafio é cada um desenhar e pintar a sua própria composição, tendo como referência os elementos previamente identificados nas obras de Miró. Para isso, podem usar qualquer um dos materiais que estão disponíveis, há também um cordão para ajudar , os desenhos vão ganhando forma e não podiam ser mais distintos, a ideia é exatamente essa. José, o benjamim, tem nele tanto de timidez quanto de concentração, o pai, António, conta que desde muito cedo se interessou por aguarela e pintura, daí que a decisão de o inscrever tenha sido natural. Carolina pediu para vir porque gosta muito de pintar, desde pequenina “que é muito das artes das pinturas”, confirma a mãe, Beatriz foi sempre “uma criança curiosa e sensível”, Alanis arrisca dizer que quer ser pintora, falam-lhe nos marcadores Posca e ela esboça um sorriso de orelha a orelha, preparou até presentes de Natal artísticos para toda a família. Já João diz que veio porque “pintava mal”, confessa que “gosta de pintar com lápis de cor”, mas preferir, prefere jogar futebol. E depois há Alice, a mais “antiga” do grupo, teve Solange como educadora e sempre gostou dela, além disso “gostava de continuar ligada à arte”. O pai dá-se por feliz por ver a filha tão interessada na pintura, acha que é “uma forma de estimular a criatividade” e de vencer “a concorrência desleal” dos ecrãs. Já com as pequenas obras de arte terminadas, algumas particularmente excêntricas, Magali destaca um outro intuito daquela hora e meia: “As crianças são naturalmente curiosas e este tipo de atividades permite-lhes explorar o medo do desconhecido.”
Para Joana Nascimento, mãe de Álvaro (sete anos) e Júlia (nove), que desde bebés frequentam o espaço Bombarda Oficinas Artes, no Porto, a complementaridade é uma parte importante da equação. “Na escola, há uma determinada forma de fazer. Aqui, eles percebem que podem optar, de alguma forma complementa o que aprendem na escola”, entende. Vieram os três a uma oficina especial de férias, que dá tanto para pais como para filhos, ainda trouxeram Jasmim, uma amiga de Júlia, estão todos a estrear-se na feltragem (que consiste no entrelaçar de fibras de lã, formando uma espécie de tecido). Têm diante deles um cubo esponjoso, que serve de base, mechas de lã e uma agulha com que devem picar a lã vezes sem-fim, de forma a que esta se transforme num tecido consistente. Joana vai orientando aqui e ali, Álvaro quis fazer uma raposa, Júlia o Pacman, Jasmim está a tentar um pássaro. “Desde que começaram a crescer que já são eles que me pedem para vir. E se digo que vimos cá ficam logo todos contentes”, partilha a mãe. Júlia é a mais vocal na satisfação. “Eu adoro!”, atira, enquanto Álvaro vai contando à colega do lado que tem vários presentes no forno, que ele próprio fez, em barro, para dar ao Pai Natal. A tal dimensão da arte enquanto facilitador social. Já Jasmim resume a experiência numa frase bem familiar: “É satisfatório!”
Quem quiser, também pode fazer tecelagem, macramé, bordado com “punch needle”, até croché. Ester Fernandes, de 21 anos, fez estágio neste espaço na Rua da Alegria. Desde então, quando há uma oportunidade, faz questão de trazer os irmãos com ela. Mara tem 15 anos e, apesar de se estar a estrear na feltragem, parece ter um talento inato, como provam a Hello Kitty e o Homem-Aranha que tem à frente. Obra dela, note-se. Lia, de 13, é mais calada, parece particularmente concentrada. David, de dez anos, é mesmo muito empenhado, quer fazer um pouco de tudo, agora a irmã está a ensiná-lo a trabalhar no tear, diz-nos que gosta de “aprender a fazer coisas”. A mãe, Sandra, que também está focada na feltragem, acrescenta que mal chegaram disse: “Estou tão feliz por estar aqui!” Mara corrige-a: “Estávamos todos, mãe!” Sandra dá o braço a torcer, até no seu caso. “É uma boa forma de terapia.”
Cristina Camargo, a dinamizadora do ateliê, nota uma procura crescente. “Tenho o espaço há 15 anos e noto uma diferença enorme. No início, pouca gente havia a querer fazer isto. Agora, há cada vez mais gente a vir ter connosco, até já tenho bastantes jovens interessados.” Além dos benefícios – como o desenvolvimento das motricidades e a estimulação do foco e da concentração -, Cristina realça a necessidade crescente deste tipo de atividades. “O digital está a levar uma grande fatia do nosso tempo e é como se a cabeça começasse a pedir este tipo de coisas, mais físicas e compensadoras. Os jogos de computador ficam lá, no ecrã, o resultado do trabalho que se faz aqui é mais palpável. Além da importância de conseguir fazer algo com as mãos, que é algo que se estava a perder e que as pessoas estão a pedir. Parece que cada vez as pessoas precisam mais desta compensação face ao que não é real.” E ela satisfeita, claro, até porque não tem dúvidas quanto ao papel “terapêutico” da arte. Só há um reparo que não resiste a fazer. “Não se entende que tenhamos de pagar 23% de IVA. Costumo brincar e dizer que é uma pena aqui não fazermos touradas”, lamenta, inquieta.