Ana Teresa Matos é pastora na Serra da Estrela, tem ovelhas, borregos e abelhas. Elisabete Ferreira é padeira em Gimonde, Bragança, só amassa farinhas nativas. Maria Manuel gere um hotel cinco estrelas erguido de casas em ruínas na aldeia de Lapa dos Dinheiros, em Seia. Ana Batel recuperou a taberna do bisavô em Poceirão, Sílvia Padinha anda envolvida em negócios sustentáveis na ilha da Culatra, Maria José Quintela quer criar uma cooperativa para recuperar masseiras no litoral norte. Elas cuidam da natureza, elas preservam o território, elas respeitam a biodiversidade. Elas fazem parte de uma rede. Empreendedorismo no feminino.
É inverno, está sol, a vista demora-se na paisagem no meio de nenhures, o ar é fresco, sente-se a pureza entrar nos pulmões. Ana Teresa Matos está onde deve estar, no Parque Natural da Serra da Estrela, a devolver à terra o que é dela, o que naturalmente lhe pertence. A semear castanheiros, a plantar bolotas, a recuperar a floresta, a melhorar pastagens. As ovelhas bordaleiras, de raça autóctone, circulam e pastam à vontade, os borregos estão resguardados nos seus aposentos, as abelhas andam na sua vida, o cão Zimbro é como uma sombra, segue-a para todo o lado. Ana, bióloga e engenheira florestal, sempre gostou da terra, é pastora na serra. É guardiã da natureza.
Ana e o companheiro André tinham e têm planos para aqueles 100 hectares. “Criar o mosaico paisagístico natural, fazer uma espécie de montado com as espécies de cá”, revela. Reflorestar, recuperar o pastoreio tradicional, fazer mel e licores de sabugueiro e outras plantas, preservar esse património. Ali, a pouco mais de 20 minutos de Folgosinho, serra acima, estrada de asfalto, estrada de terra, os dias começam cedo. Tratar dos animais, do pasto, das colmeias, do que ali quer nascer na Reserva do Vale Velho, projeto de Ana e André, nessa vontade comum de recuperar um espaço de montanha, lugar rico em biodiversidade que, a quatro mãos, resiste às ameaças que abafam o meio rural.
Mais a norte, também amanhece cedo. Elisabete Ferreira está a pé desde as seis da manhã e não pára, mãos na massa, a orientar a produção de olho nas temperaturas, nos ingredientes. Há muito para fazer na padaria, pães, bolos-reis, bolinhos económicos transmontanos. “Este pão trigo sarraceno biológico com nozes começou a ser feito ontem”, diz-nos num vai e vem constante no seu espaço de trabalho com dois fogões industriais alimentados a lenha.
No seu negócio Pão de Gimonde, face à EN218, na aldeia de Gimonde, Bragança, Elisabete usa massa-mãe para um pão saudável e saboroso, cheio de fibra. Ali não entram farinha com aditivos, só nativas. Elisabete sabe o que faz, promove a cultura do trigo barbela e do centeio de Trás-os-Montes, valoriza a agricultura do nordeste transmontano, privilegia a moagem tradicional, circuitos curtos, economia sustentável. “É preciso gostar do território, sempre quis valorizar a profissão, valorizar o pão”, conta. A dedicação não tem passado despercebida, foi eleita a melhor padeira do Mundo, a primeira mulher com esse título, pela União Internacional de Panificação e Pastelaria, pelo seu trabalho e percurso na valorização do pão. É guardiã da natureza há cerca de um ano. “Há um antes e depois das guardiãs, conhecemos gente fantástica que tem paixão pelo que faz.” E faz todo o sentido. “O sentido de fazer parte de um projeto, de fazer a diferença”, explica.
Voltamos à Serra da Estrela. Quando o olhar sobe a partir de curvas e contracurvas da estrada, antes do corte para ruas estreitas, a aldeia de Lapa dos Dinheiros, concelho de Seia, surge encavalitada no alto da serra, a vista será soberba. São mais de 700 metros de altitude, alto de um cabeço, o rio Alva, a ribeira da Caniças, praia fluvial, cascata, natureza a rebentar por todos os poros. As Casas da Lapa, Nature & Spa Hotel, de cinco estrelas, no topo da aldeia, surge em socalcos na paisagem. “Eram casas em ruínas que foram reconstruídas com respeito pela arquitetura tradicional”, adianta Maria Manuel que nunca teve dúvidas. “Acreditamos sempre que esta aldeia é especial e merecer ser mostrada.”
O marido Nuno é da aldeia e o projeto hoteleiro nasceu dessa ligação e foi crescendo. Hoje tem 15 quartos, sauna, banho turco, uma piscina interior e duas exteriores, biblioteca, restaurante, o único na aldeia, uma cascata natural. Um cinco estrelas numa aldeia de montanha, no Parque Natural da Serra da Estrela, alimentado pela energia solar, rodeado de natureza. “Usamos, o mais possível, materiais locais, granito e burel na decoração, empregamos mão-de-obra local.” Tudo se encaixa, um hotel requintado numa aldeia com campos, rebanhos, vales e colinas e cerca de 200 habitantes. Maria Manuel, farmacêutica e professora na Universidade de Coimbra, também dedica o tempo à promoção do turismo ligado ao meio natural e à comunidade da aldeia, na sua vontade e propósito de preservar a natureza e fazê-lo com pessoas. Também é guardiã da natureza. “O que é muito interessante é que nos põe em rede com outras pessoas com diferentes atividades que traduzem conhecimentos tradicionais e que nos aproximam de outras culturas.” “Permite-nos chegar mais perto do que são produtos genuínos”, acrescenta. As guardiãs fazem parte de uma rede.
Partilhar, cooperar, capacitar
A Rede de Guardiãs da Natureza e Desenvolvimento Sustentável do Mundo Rural, da Business as Nature – Associação para a Produção e Consumo Sustentável e a Economia Circular, surgiu em julho de 2023 para envolver e capacitar mulheres como guardiãs da natureza, defensoras da sustentabilidade do meio rural e do litoral, incentivando-as a desenvolverem o seu próprio negócio. “Temos mulheres dos 20 aos 80 anos, com graus de literacia muito distintos, com experiências de vida muito diferentes, o que acaba por ser muito rico para a rede, e, sobretudo, sentem que não estão sozinhas”, adianta Susana Viseu, geóloga, responsável pela Business as Nature, consultora do presidente da República para as áreas da transição climática, ambiente, energia e oceanos, que lançou o movimento Mulheres pelo Clima dos países de língua portuguesa para o Mundo.
Partilha, sustentabilidade, conhecimento são pontos fortes desta rede de cooperação que tem sido apresentada em vários territórios, áreas naturais e protegidas, envolvendo municípios e parceiros locais. “São mulheres que já estão a aproveitar, de alguma maneira, os recursos endógenos de forma sustentável”, refere Susana Viseu. Numa primeira fase, inscreveram-se 585 mulheres, das quais 120 fizeram o programa de capacitação, saindo 90 projetos de intervenção. Esse programa de capacitação, de empreendedorismo sustentável, tem 11 módulos, atividades e workshops, mentorias e consultadorias, trabalhando competências como organização e resiliência, comunicação e motivação. Em abril ou maio, haverá um “shark tank” para apresentação de ideias a potenciais investidores. Tudo gratuito para as guardiãs.
Ana Batel, formada em artes plásticas, é guardiã com muito orgulho. “Trabalhar com várias guardiãs é uma mais-valia, acabamos por nos complementar em várias áreas, trabalhamos em conjunto.” Há seis anos, mudou de vida, começou a recuperar um monte de família do seu bisavô Hermínio Guerra, que construiu um império na região, no Poceirão, Palmela. A sua antiga taberna foi transformada na Mercearia Caramela que promove pequenos produtores, pequenos negócios, produção artesanal local. Ana Batel fala deste projeto, que valoriza a história e o trabalho de três gerações, com um brilhozinho nos olhos. “Promovemos uma maior relação com o território, a economia circular, as cadeias curtas. É um projeto diferenciado.” A mercearia abre por marcação, há harmonizações gastronómicas. “Ao longo deste percurso acabo por encontrar o meu propósito, a recuperação da visão de negócio de Hermínio Guerra”, refere.
Mais a sul, na Ilha da Culatra, na Ria Formosa, Algarve, a história é de luta, de bater o pé à demolição das casas dos pescadores. A comunidade resistiu durante anos e conseguiu ali ficar, defendendo o seu modo de vida, a sua identidade, a sua cultura. Sílvia Padinha é presidente da Associação dos Moradores da Ilha da Culatra e é guardiã da natureza. “O respeito pela nossa vida e o nosso trabalho foi sempre a nossa luta”, diz. Nascida e criada na Culatra, filha e neta de pescadores, conhece bem a ilha que vive dos recursos naturais, da pesca artesanal na ria e no mar, da apanha de bivalves, sobretudo ameijoas e ostras. São 400 famílias, neste momento. Sílvia não se cansa de repetir o óbvio nessa dedicação de proteger um ecossistema frágil, uma ilha barreira entre o mar e a terra. “É importante manter os valores locais, o equilíbrio entre o homem e o meio para que cada um possa ocupar o seu lugar.”
“O turismo começa a ser sustentável, saudável, que serve de complemento e nunca como alternativa aos moradores da ilha”, observa Sílvia Padinha. Há muita coisa feita, outras para fazer na preservação do meio natural da Culatra, a primeira do Algarve a aderir à pesca por um mar sem lixo, programa focado em boas práticas ambientais. Há um barco coletivo elétrico, com painéis solares, que transporta os bivalves para Olhão, e foi criada uma cooperativa com jovens da ilha interessados na produção de energia mais sustentável. Até 2030, haverá uma mini fábrica para transformar lixo marinho em materiais para a pesca.
Como guardiã, Sílvia conta o que vive e o que acontece na ilha. “Partilho a minha visão desta responsabilidade social e ambiental, transferindo esse conhecimento. Conto a nossa história e o nosso percurso e ouço outras histórias, sempre com o objetivo final de vivermos numa sociedade mais harmoniosa e equilibrada com respeito pelos valores naturais.”
Elisabete, a padeira de Gimonde, realça mais aspetos dessa rede. “Ganhamos muito, ganhamos uma rede de conhecimento e de amizade. É fundamental essa partilha entre colegas que nos pode ajudar no que podemos fazer pela natureza.” “Não há dinheiro envolvido, se houvesse uma relação financeira não era a mesma coisa, isso faz toda a diferença”, acrescenta. No início de dezembro, lembra, várias guardiãs transmontanas participaram numa caminhada contra a reativação das minas no Parque Natural de Montesinho, nos concelhos de Bragança e de Vinhais, na terra fria transmontana. Ser guardiã também é isso, é envolver-se nos anseios da comunidade.
Elisabete nasceu em França, aos oito anos mudou-se para a terra do pai. “Sempre quis valorizar a profissão, as pessoas tinham vergonha de dizer que eram padeiras”, lembra. A Padaria Pão de Gimonde, pão de fermentação natural, é um negócio de família, do tio-avô do pai, vai na terceira geração.
Licenciou-se em Gestão de Empresas, melhorou o layout da padaria, analisou como podia melhorar a produção, sempre a estudar, a pesquisar, a viajar, em encontros nacionais e internacionais, em conversas com universidades em várias partes do Mundo. “Sou portuguesa e padeira, mas muito viajada.” Fala quatro línguas e, neste momento, anda a estudar, e a anotar num caderno, como fazer um pão para os mais velhos mais digerível e saboroso.
Elisabete ainda não parou, sabe fazer tudo ali, desde tirar faturas ao embalamento. O seu pão vai para todo o país e para Irlanda, Inglaterra e França. “É muito moroso, muito trabalhoso, as pessoas não têm noção, veem o pão nas prateleiras e pensam que é tudo rápido.”
“A vontade de fazer diferente”
Ana, a pastora, sabe que nada é rápido. O seu projeto ganhou forma em 2018 com a compra da quinta. “Fizemos a desmatação inicial para começar a criar pastagens para o gado e recuperar a biodiversidade, plantámos 110 castanheiros”, recorda. Depois, em 2022, vieram os incêndios e começaram de novo para nascer tudo outra vez. “Sempre tive esta paixão pela natureza, de poder atuar na terra e fazer alguma coisa de bom.”
Ana não é dali, é de Vila Franca do Rosário, freguesia de Mafra. Preparou-se. É bióloga e engenheira florestal, fez a Escola de Pastores e a Escola de Queijeiros, em Viseu, na Escola Superior Agrária. Os pais são biólogos, as férias de verão não eram na praia, eram na serra da Estrela, onde o pai estudava a lagartixa da montanha. Daí tanto amor pela terra e pela serra. André é arqueólogo. Conheceram-se na universidade.
Ana acredita nos processos e saberes ancestrais, no poder da ecologia, num interior diferente, mais sustentável, mais natural, igual a si próprio. Por isso, arregaça as mangas. É guardiã há poucos meses. “É um projeto muito interessante que nos vai ajudar a criar uma base para seguir em frente. Temos força para continuar e queremos avançar.” Encontrar apoios, um mentor, criar parcerias, organizar atividades no pastoreio, demonstrações da produção artesanal do queijo da serra. Olhar para o futuro. “As guardiãs ajudam-nos a encontrar formas.”
Assim é, de facto. Um dos objetivos da rede, segundo Susana Viseu, é “fixar mulheres, e suas famílias, em territórios de baixa densidade e potenciar a sustentabilidade dos seus negócios.” Começou em sete áreas protegidas, Parque Natural de Montesinho, Parque Natural Litoral-Norte de Esposende, Serra da Estrela, dunas de S. Jacinto e Paul de Arzila, Estuário do Sado, vale do Guadiana e Ria Formosa, estende-se agora para outros territórios como o Douro Internacional e o Parque Nacional Peneda-Gerês, entre outras.
A rede vai esticar. Susana Viseu quer alargá-la à Madeira e aos Açores e internacionalizar o projeto, já há contactos com mulheres indígenas da Amazónia, guardiãs de sementes crioulas da Guiné-Bissau e das salinas de Cabo Verde, mergulhadoras de Timor-Leste. Este ano, há mais ideias para colocar em prática, criar uma rede de alojamentos para que as guardiãs possam vender os seus produtos e organizar atividades e experiências. Susana Viseu dá exemplos. “Cortar caldo verde, fazer uma chanfana, assar cabrito no forno da aldeia.” Na Serra da Estrela, pretende-se criar um lounge de guardiãs, um espaço que funcione como ponto de encontro, e testar o modelo de incubadoras móveis. “A rede é uma porta de entrada para muitas iniciativas”, reforça a responsável.
Na Culatra, Sílvia Padinha interessa-se por testar modelos viáveis, potencia ligações a universidades, e não esconde a satisfação pela fixação de gente nova. “Jovens empresários de sucesso com pequenas empresas familiares, a produzir de forma inovadora, a manter as áreas que eram dos seus avós.” Em Lagoa do Calvo, Ana Batel dedica-se ao seu projeto que não é apenas uma montra de produtos de pequenos produtores, à venda na mercearia e online, também tem showcookings, degustações, provas, rotas, eventos para dar a conhecer a região.
Este ano, quer arrancar com um projeto educativo com a mãe Daniela Oliveira, que foi professora, para contar a história da herdade, da família e da região, através dos objetos antigos do monte. “Temos tido muito pano para mangas.” Consolidar parcerias com operadores marítimos terrestres, dar a conhecer a região a um público internacional. “Não é não só a recuperação da visão de negócios do passado, mas também o legado que deixo para o futuro, para a minha querida filha Lara.” Lara, com apenas com 13 anos, participa em projetos da Caramela, desenvolve workshops para crianças quando há atividades na mercearia. “É um projeto no feminino, portanto.”
Maria José Quintela é geóloga e tem um projeto que quer concretizar, ideias na cabeça, inscreveu-se como guardiã da natureza. Está quase na reforma, trabalhou num parque natural, nos seus passeios de bicicleta pela área litoral norte, na zona de Esposende, foi olhando com particular atenção para espaços de cultivo, protegidos das nortadas, antigamente terra de legumes e hortaliças, pencas, nabos, cenouras. Áreas em vias de extinção quando a areia começou a ser retirada para a construção civil e a paisagem foi invadida por estufas de plásticos.
Perante o cenário, idealizou o projeto “masseiras comunitárias”. “São terrenos agrícolas com a forma das masseiras do pão, por detrás das dunas.” Daí o nome, explica. Ainda há alguns que podem ser aproveitados, garante. A ideia é, avança, “recuperar as masseiras de forma regenerativa, arranjar soluções para os agricultores.” Respeitar a terra e a paisagem. Para isso, Maria José quer criar uma cooperativa de guardiãs com vários projetos e eixos de intervenção rente ao litoral norte. “É a vontade de fazer diferente”, conclui. Ser guardiã por inteiro. Como todas as outras.