Valter Hugo Mãe

Eunice


Há uns anos, encontrei Marcelo Rubens Paiva num evento em São Paulo e foi impossível falar-lhe sem abrir sobre minhas ideias seu incrivelmente famoso livro “Feliz ano velho”. É inevitável que a leitura de um livro marcante faça a mediação de um encontro assim, porque estamos reagindo à impressão da leitura e respondendo, como podemos, à aprendizagem importante a que acedemos. Encontrar Marcelo, sorrindo e julgo que também alegrado, para mim significou ver como nada se pode substituir à verdade mesmo no universo da literatura quando o que está em causa é caminhar no sentido da ficção.

Um romance pode optar pela mistificação que quiser mas um autor, afinal, por mais que queiramos alonjá-lo dos seus livros, está sempre como origem do mistério, radical do diamante que nos fascina e importa. E, ver Marcelo, não foi só estar diante do jovem de “Feliz ano velho”, foi também saber que aquele era o filho de Rubens Paiva, deputado federal assassinado pela ditadura militar brasileira em 1971. 1971 foi o ano em que nasci. No tamanho todo dessas datas, eu medi a diferença de nossas vidas. Mesmo tendo perdido o meu pai demasiado cedo, muito mais cedo e sinistra foi a maneira como Rubens Paiva foi levado e feito desaparecer por décadas sem qualquer informação de sua morte.

Ver Fernanda Torres na nova obra-prima de Walter Salles, “Ainda estou aqui”, foi para mim mais do que acompanhar a história de que todos já falávamos. Foi reencontrar Marcelo Rubens Paiva, o escritor diante de quem me senti pequeno e meio perdido, numa proximidade comovente. Eunice, nome da mãe do escritor, é tão credível na representação de Fernanda Torres que deixamos o cinema convictos de que fomos até ela, quase abraçamos seu corpo em busca de respostas, em direcção à esplendorosa sobrevivência.

O cinema tem esta mágica de nos convencer de que estivemos junto das personagens, habitamos por instantes seus espaços e quase abrimos a boca para algum alerta, alguma palavra de cuidado no momento certo. Mas o que Walter Salles faz no corpo inteiro de Fernanda Torres é um monumento de veracidade, de realismo, uma quase impossível maneira de nos recuar no tempo e mostrar como, sem máscara, a ditadura brasileira foi o pretexto para instalar a desumanidade.

Este filme, como já era o livro e o testemunho bravo de Marcelo Rubens Paiva, é só de mentira um filme. Porque não acontece de o largarmos no cinema quando partimos para casa. Ele vira um lugar por onde passámos. Um lugar que deixa para sempre a impressão de havermos encostado o ombro em Eunice, em Rubens, nas crianças cujo espanto é o luto lento e amargo a que se viram obrigadas.