Jorge Manuel Lopes

Eterna é a noite


A discografia dos Saint Etienne encarna aquilo que a palavra “britpop” deveria, num mundo mais justo, significar: canções pop que levam o ouvinte pela mão, diretas e virtuosas, corpo geralmente eletrónico, de uma simplicidade epidérmica sustentada por múltiplas e sábias camadas, elegantes e gentilmente excêntricas, universais no rumo e melodia mas apaixonadas pela minúcia e mistério de um quotidiano que cheira e sabe a britânico.

Sabe-se, no entanto, que a britpop assumiu formas mais utilitárias e menos diversas com o correr do seu reinado na segunda metade dos anos 90 do século passado.

É certo que houve um período fugaz em que este trio londrino partilhou esse comboio estético, mas a música de Bob Stanley, Pete Wiggs e Sarah Cracknell transcende em absoluto esta etiqueta, com uma carreira de 34 anos que circula sobretudo pela synthpop salpicada de anos 1960 e folk e musgo, eletrónica de dança com bola de espelhos batida pela morrinha, e peças ambientais atravessadas por nevoeiro.

Neste jogo de estímulos, a banda ainda não havia chegado à combinação que se ouve em “The night” (Heavenly). De pendor decididamente ambiental, é um movimento em 14 capítulos, uma vigília quase sem bases rítmicas. Pode ser subtil, mesmo quando majestoso, como em “Half light”; um poço sem fundo de ecos de onde emerge “Nightingale”; pode ter a espessura vazia do dub que abraça “When you were young”; ou aludir a Burt Bacharach, caso de “Gold”.

Sarah Cracknell atravessa as composições entre o canto e a palavra dita. Os estilhaços de versos detêm-se em observações sobre a passagem escorregadia e deslizante do tempo, naquele estado meditabundo e de baralhação da realidade em que se mergulha na profundeza da noite. São descrições microscópicas de cenários, parentes próximos do haiku. Por toda a parte, aparições de conversas distantes, carros, pássaros, chuva (muita chuva).

“The night” é um álbum de teatro radiofónico. Tocante. Um lugar em que ganham vida as meias memórias que se depositam e entrelaçam em nós, sem lógica aparente, com o passar dos anos.