Entre o pânico e a incerteza. Portugueses na América de Trump

Há quem viva com o medo permanente de uma deportação sem hora marcada. Quem ande com o peito apertado, só de sentir a angústia de quem está à volta. Quem, mesmo tendo um trabalho altamente qualificado, reconheça a indefinição que paira. Porque “ninguém está seguro”. A vida nos Estados Unidos é, por estes dias, uma “realidade distópica”.

Maria Coutinho, 78 anos, a mais velha de dez irmãos naturais do Marco de Canaveses, chegou à América em 1967, ano particularmente conturbado no país das oportunidades. Era o tempo dos grandes combates raciais, contra a brutalidade policial, a pobreza, a desigualdade. No ano seguinte, Martin Luther King, ícone da luta contra o preconceito racial, seria assassinado a tiro na cidade de Memphis. Mas alguns dos tumultos mais destrutivos daquele período ocorreram no verão daquele ano de 1967, em Detroit (Michigan) e Newark (New Jersey), precisamente a cidade para onde Maria se mudou, no início desse ano. Cedo soube, portanto, o que era viver num clima de volatilidade e incerteza. Não se lembra, contudo, de ter vivido um momento como o de hoje. “O meu filho costuma dizer-me: ‘Mãe, não consigo ver as notícias que me dá nervos’. E é mesmo isso. Ainda agora isto que se passou com o Zelensky [presidente ucraniano que foi humilhado por Donald Trump e acabou expulso da Casa Branca]… foi horrível, uma vergonha. Uma pessoa pensa: afinal, isto é que é a América?”, desabafa Mariazinha, como é conhecida na comunidade que há muito se fez casa. Hoje, porém, a ansiedade toma conta de muitos dos que a rodeiam.

“Isto hoje é difícil. Não é como no meu tempo, que ficávamos legais muito rápido. Eu cheguei em 1967 e em 1974 tornei-me cidadã americana.” Mais de 50 anos depois, ainda recorda aquele dia com notável detalhe. “Foi a 9 de agosto. Nunca mais me esqueci porque quando me chamaram para ter a cidadania, perguntaram-me quem era o presidente americano. E eu sei que olhei para o relógio e respondi: ainda não é meio-dia, portanto ainda é o Richard Nixon [Nixon renunciou nesse dia à presidência, na sequência do caso Watergate]. Nem me fizeram mais perguntas, porque perceberam logo que eu sabia do que estava a falar.” Chegou aos EUA com o marido, cedo começaram a trabalhar numa padaria, anos depois já estavam a abrir um negócio só deles, chegaram a ter 150 empregados, quatro balcões, várias carrinhas a fazer distribuição pelos supermercados (hoje estão reformados). Pelo meio, lá está, conseguiram os documentos, a cidadania, a tão almejada paz, tão distinta da realidade com que hoje se deparam outros imigrantes portugueses, sobretudo desde que o recém-eleito presidente começou a prometer as badaladas “deportações em massa”.

Maria Coutinho, conhecida por Mariazinha, mudou-se para Newark na década de 1960, na altura dos grandes protestos raciais, mas não se lembra de um momento como o de hoje

“Vejo muita ansiedade e preocupação, sobretudo nas pessoas que estão ilegais. Este é um país de imigrantes. Há milhões de pessoas que trabalham e pagam as suas taxas [estima-se que haja 13 milhões de imigrantes indocumentados no país], que não fizeram mal nenhum e agora vivem num medo constante, porque não se conseguem legalizar.” Por ser “district leader”, e estar “muito ligada às pessoas”, Mariazinha vive de perto o receio de todos os que, por falta de opções, continuam sem documentos. “É uma preocupação diária. Há muita gente a viver com medo de ser apanhada. Ainda por cima, logo três dias depois de o Trump tomar posse, os serviços da imigração estiveram cá e apanharam três portugueses que tinham um negócio de mariscos.” Às vezes, agarra-se a uma esperança pequenina, que lhe vai aquecendo o peito. “Pode ser que haja uma amnistia para quem não tem registo criminal e não se consegue legalizar.” Mas logo o desânimo volta a tomar conta dela. Maria suspira. “Esta terra foi feita por imigrantes e é dos imigrantes também. Vivo triste por ver as pessoas assim.” Há ainda outra inquietação que não a larga. “Temos visto tanta coisa que tenho cada vez mais medo que possa haver uma nova guerra mundial.”

Helena da Silva Hughes, de 64 anos, natural da Madeira, mas residente em New Bedford (estado de Massachusetts) há mais de 50 anos, conhece ainda melhor as dores de quem trabalha e desconta em solo americano, mas agora vive sob a ameaça diária de uma deportação súbita e definitiva. Mudou-se para os States logo aos dez anos, começou a trabalhar no Immigrants’ Assistance Center (Centro de Assistência a Imigrantes) como secretária aos 20 e poucos, pelo meio fez dois cursos superiores. Chegou a diretora executiva do centro em 1996 e é desde 2021 a presidente. Para ela, a cidadania americana há muito deixou de ser uma questão (tem-na desde 1980). Mas para as dezenas de pessoas que chegam diariamente ao centro, muitas delas desesperadas, o caso é bem mais bicudo.

“As pessoas estão muito assustadas e parece-me que isto é intencional. Há muita gente que está a pensar voltar para Portugal. Não me lembro de sentir as pessoas tão inseguras.” Para minorar o impacto das políticas trumpistas, o centro a que preside começou há muito um trabalho de apoio aos imigrantes, os ilegais sobretudo. “Logo durante a campanha, quando vimos que ele estava constantemente a falar de imigração e de deportação, começámos a preparar as pessoas.” No fundo, ajudam a gizar um plano de emergência familiar que visa mitigar danos, no caso de haver uma deportação. Principalmente quando há crianças envolvidas. “Se as pessoas forem apanhadas pelos serviços de deportação, tem de haver alguém que fique responsável pelas crianças e que depois ajude a juntar a família novamente.” Mas há outros cuidados importantes a ter. Desde logo, ter documentos como certidões de nascimento e passaportes todos juntos e num local seguro, do conhecimento de toda a família.

Desistir do sonho, em nome do medo

Contudo, não há planos de emergência que ajudem a conter o medo que, por estes dias, grassa nos lares de quem não está legal. “Trabalho no Immigrants’ Assistance Center há 41 anos e nunca vi este país da maneira que está. Há muita ansiedade, muito medo, e isto vai ter um impacto enorme na saúde mental das crianças daqui a uns anos. Estamos até a ver que há cada vez mais famílias que têm medo de mandar os filhos para as escolas, com receio de que lhes aconteça alguma coisa. Em 2017, quando Trump tomou posse pela primeira vez, havia os chamados sanctuaries [santuários], que eram lugares, como as escolas, os hospitais, as igrejas, onde os serviços de imigração não podiam entrar. Agora já não há. E as pessoas têm medo.” Na verdade, garante Helena, há até cada vez mais portugueses dispostos a deixar tudo para trás, para não terem de viver numa redoma de medo. “Muitos deles têm pequenos negócios, de limpar casas, de carpintaria, etc., têm uma boa vida. Mesmo assim, estão a preparar-se para ir embora, a tratar de vender as casas e outros bens. Preferem isso do que arriscarem ser deportados à força. O próprio departamento de Segurança Nacional incentiva à autodeportação. Pede às pessoas que não esperem para ser deportadas. E há cada vez mais famílias que estão a fazê-lo, porque viver neste pânico constante não é vida. Muitas pedem-nos ajuda em lágrimas.”

Helena da Silva Hughes é presidente do Immigrants’ Assistance Center de New Bedford e tem desenvolvido um trabalho intenso no sentido de ajudar os imigrantes a precaverem-se de uma possível deportação repentina

Vera, só Vera, é uma dessas portuguesas. Natural de São Miguel, nos Açores, mudou-se para os Estados Unidos há 13 anos, porque arranjar trabalho na ilha estava a ser missão impossível. Foi com o marido e dois filhos pequenos, ele começou logo a trabalhar na área da construção – hoje tem empresa própria -, ela passou os primeiros tempos a cuidar dos pequenos, depois tornou-se empregada doméstica, tem hoje um salário bem superior ao que conseguiria em Portugal. Porém, nunca conseguiram os documentos necessários para se legalizarem. “É difícil, para quem não vem de um país em guerra ou de pobreza extrema, restam poucas opções, ou se casa com um cidadão americano, ou só através de uma carta de chamada de um familiar”, justifica-se. E, portanto, foram-se mantendo no limbo, conscientes de que a ilegalidade não lhes dava grande segurança, mas nunca com o medo que hoje sentem. “Estou muito assustada. Em 13 anos, nunca me senti propriamente ilegal. Agora sinto. Assustam-me sobretudo as coisas que ele [Trump] diz, incitando ao ódio entre pessoas. Para já, tem sido mais virado para as pessoas negras e acho que por ser branca tenho escapado. Mas cada vez mais acho que vai chegar a vez dos brancos.”

Temendo o pior cenário, prefere antecipar-se. “Estamos a planear sair até ao fim do ano, porque se formos deportados as coisas agravam-se, e fica praticamente impossível voltar. Se formos por vontade própria, sempre poderemos ter esperança de voltar, um dia que as coisas mudem. Não queremos deixar o nosso nome sujo aqui. Nem quero arriscar ser apanhada, presa e deportada. Deve ser um trauma grande.”

Por isso, andam já no processo de vender os bens, de fechar a atividade da empresa do marido, de procurar um trabalho em Portugal. Mas não está fácil. “Eu vou para onde tiver uma oportunidade. Mas tem sido muito difícil. Ainda por cima, não temos casa em Portugal, teremos de alugar, mas sem trabalho também não conseguimos.” E mesmo que a racionalidade e a cautela os leve a planear uma saída “limpa”, há uma frustração que vem à tona com frequência. “Nós sempre soubemos que estávamos ilegais, porque não há uma lei que se enquadre no nosso caso. Mas sempre trabalhei e sempre paguei o IRS aqui, é muito injusto.” Na verdade, a vontade de estar legal no país é tanta que, há cerca de um ano, acabou por cair num esquema fraudulento, que prometia a atribuição do “green card” (cartão de residência permanente), mediante o pagamento de 16 mil dólares. “Queríamos melhorar a nossa vida e acabámos por ficar na mesma. Ou pior, porque perdemos 16 mil dólares.” E, como eles, centenas de portugueses, assegura. Apesar da mágoa, diz e repete: “A América é mesmo o país das oportunidades. Aqui, toda a gente consegue um bom trabalho.”

Helena da Silva Hughes lembra, a propósito, que há uma promessa de “reforma de imigração” há mais de 30 anos. E porque é que nunca avançou? Porque há uma “economia paralela que vive disto” e porque “as grandes companhias fazem milhões com pessoas que não têm documentos”. Quanto às últimas semanas, aponta uma outra tendência que lhe parece evidente. “Vejo as pessoas que já têm documentos muito preocupadas em inscrever-se para obter a cidadania o mais depressa possível. Cada vez mais têm medo que o ‘green card’ já não chegue para proteger os seus direitos. Trump está sempre a assinar ordens diferentes e já ninguém sabe muito bem o que vai acontecer. A sensação é de que ninguém está seguro.” Desde que tomou posse, há pouco mais de mês e meio, o novo presidente americano já assinou centenas de ordens executivas, desde a retirada dos EUA do Acordo de Paris e da Organização Mundial de Saúde, à imposição de tarifas ao México, ao Canadá, à União Europeia, passando pela suspensão do apoio militar à Ucrânia. A nível interno, criou um Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado por Elon Musk, que já se traduziu no despedimento de dezenas de milhares de funcionários públicos, revogou políticas de proteção a pessoas transgénero e, lá está, intensificou as deportações. Tentou até abolir o direito à cidadania por nascimento, mas a medida foi bloqueada judicialmente.

A incerteza também chega às universidades

Não espanta que a indefinição seja, por estes dias, uma névoa constante na terra do tio Sam. Ela estende-se até aos trabalhos mais qualificados, e o contexto académico não é exceção. Nuno Moniz, de 37 anos, natural da ilha do Faial (Açores), dá conta disso. Mudou-se para os EUA há três anos, com a esposa, teve dois filhos entretanto, dá aulas de Inteligência Artificial na University of Notre Dame, em South Bend (estado do Indiana), tem um visto temporário, de especialista, e a esperança de que em breve passe a permanente. Mas, nos tempos que correm, nada parece garantido. “Quando alguém é imigrante num país que está a atravessar um período como este, há sempre um certo grau de expectativa no ar, em relação ao que pode vir a acontecer. Felizmente vivo num contexto muito particular, trabalho numa grande universidade numa cidade pequena e toda esta tensão que vamos vendo nas notícias não se traduz, para já, no nosso dia a dia nem nas nossas relações pessoais.” Ainda assim, a sensação de incerteza é incontornável. “Diria que é o sentimento mais prevalente. Sabemos que os EUA têm florescido muito à base de imigrantes e à capacidade de atrair talento internacional. Mas quando vemos isto tudo a desenrolar-se, torna-se confuso. Há uma incerteza que por vezes é difícil de gerir. Ninguém sabe muito bem o que vai acontecer e, desde janeiro, tornou-se claro que não há um imigrante nos EUA que possa jurar a pés juntos que está seguro. No nosso caso, não sentimos que haja um risco de deportação, mas há sempre o risco de uma inversão na política de imigração, nesta área de especialistas.”

Nuno Moniz, professor universitário, vive no Indiana, um estado “vermelho”, mas não sente a tensão política no dia a dia. Reconhece, no entanto, que a indefinição é uma sombra que paira sobre todos os imigrantes

Apesar de viver num estado marcadamente republicano, a cidade em que se instalaram é tradicionalmente democrata. Acresce que “nos EUA, de uma forma geral, as pessoas não têm uma convivência política e social como a que há em Portugal”. “Aquela coisa de ir ao café, estar a ler o jornal e começar a comentar política não é habitual.” Pelo que grande parte das tensões políticas que vão marcando o país acabam por “não se fazer sentir no dia a dia”. “Quem vê as notícias em Portugal tem a ideia de que existe um confronto muito ativo entre as pessoas, que andam aqui às turras, mas não é verdade, pelo menos na maior parte do território.” Por outro lado, não se surpreenderam com a vitória de Donald Trump. “Já andávamos há um ano a dizer que ele ia ganhar. Muitas das coisas que fora do país podem chocar, em relação ao que é dito ou feito do ponto de vista internacional, não têm grande impacto para os americanos. Quando se trata de ir votar, o que pesa é sobretudo a carteira. É perceber quanto é que se vai receber ou pagar de IRS. É um voto pouco político.” A título pessoal, confessa alguma inquietação sobre os episódios que têm marcado as últimas semanas. “As ações desta nova administração dos EUA estão a realinhar equilíbrios mundiais e tenho dúvidas de que isso seja positivo. Enquanto cidadão do Mundo, estes desenvolvimentos geram-me receio sobre o que será o Planeta daqui em diante.”

Também Miguel Heleno, de 37 anos, residente nos EUA há nove, se depara com a incerteza que paira sobre uma parte significativa da força laboral do país. Trabalha no Laboratório Nacional de Berkeley (estado da Califórnia), detido pelo Governo Federal, mas gerido pela Universidade da Califórnia, e também ali se sentem as consequências do regresso de Trump ao poder. “Tem havido uma série de cortes na investigação relacionada com o clima e há aqui muitos colegas que estão com grandes dificuldades de financiamento, e possivelmente laboratórios que vão ter de fechar.” A título pessoal, como está mais virado para a questão das redes elétricas, não espera grandes oscilações. Mas o impacto numa parte das pessoas que o rodeiam é já evidente. Miguel dá um exemplo concreto. “Em 2021, fui cooptado pelo Departamento de Energia, para trabalhar na área das políticas de equidade e justiça energética. Entretanto, voltei ao meu posto, em Berkeley, mas os funcionários federais que continuaram lá receberam recentemente um email a dizer que tinham sido postos em pausa administrativa. Continuam a receber, mas na prática estão impedidos de trabalhar.” Também por isso, entende que a sensação que se vive por estes dias transcende a incerteza. “É mesmo um clima de medo do que aí vem, nalguns casos de pânico, as pessoas sentem-se manietadas e há um desagrado geral, um sentimento depressivo.” Nota, no entanto, uma diferença substancial, relativamente ao primeiro mandato de Trump. “Da outra vez, houve uma grande reação popular, muita presença das pessoas na rua, institucionalmente havia uma série de pruridos em abraçar estas políticas, que na altura nem foram assim tão agressivas, agora tem sido completamente diferente. Temos estes bilionários americanos a ditar ordens a partir da Casa Branca, e parece que não há resistência. Há quase uma aceitação e uma preocupação de adaptação, no sentido de: ‘Como é que nos vamos adaptar e manter as nossas organizações?’ É um bocado assustador.”

Miguel Heleno, cientista no Laboratório Nacional de Berkeley, vive em São Francisco, num estado progressista (Califórnia).
Mas também no meio em que se move sente o medo em relação ao futuro, face às mais recentes decisões de Donald Trump

E porquê? Para Miguel Heleno, a resposta é óbvia: “Parece-me que há uma perceção geral de que isto não é temporário, não são só quatro anos e depois volta tudo ao normal. Há uma noção de que vamos ter de viver com isto e, portanto, temos de nos adaptar. E isto é muito preocupante, porque em qualquer regime autoritário, há sempre esta complacência, que o ajuda a proliferar.” Por tudo isto, o cientista assume-se preocupado. Não tanto a nível pessoal – até porque já tem o “green card” -, mas antes numa visão mais global. “Preocupa-me mais o impacto que tudo isto vai ter no Mundo do que em mim. Esta desestabilização internacional e esta possibilidade de guerra que paira. O discurso agressivo e de ódio contra as minorias, que é particularmente grave. Além de não sabermos o que esperar de uma economia gerida por pessoas que apenas estão preocupadas com os seus interesses. A pessoa mais rica do Mundo comprou um passe para estar na Casa Branca e dizer como as coisas vão ser feitas. É uma realidade distópica. E ninguém pode dizer o que quatro anos assim vão fazer à democracia e às instituições.”