
Tó Manel tem peças únicas do Leixões, uma camisola de 1922, um emblema que navegou na chaminé de um barco. Carlos Freitas (Kalicas) sabe as histórias de mais de 300 camisolas do Vitória, tem relva do Jamor à porta e bandeira na varanda. João Rodrigues Freitas lançou a primeira caderneta de cromos do Espinho e escreveu um livro sobre o futebol e outro sobre o voleibol dos “tigres”. É amor, é paixão, é maluqueira (bonita e saudável, garantem).
Tó Manel tem tudo o que se possa imaginar do Leixões Sport Club. “O Leixões não se discute, ama-se”, lê-se na parede e confirma-se ao vivo e a cores. Durante 25 anos, a coleção esteve exposta no primeiro andar da sua drogaria, a dois passos da lota de Matosinhos. Agora, desde 2023, na casa que a mãe lhe cedeu, perto do mercado, ocupa três divisões e casa de banho no autointitulado “museu do Tó Manel”. Num corredor, à entrada, estão cachecóis de lã e tecido, os de seda estão lá dentro, peças de madeira alusivas ao Leixões que andavam nos barcos, tradição de outrora, recortes de jornais e revistas, fotografia sua no Santiago Bernabéu, Madrid, 2011. Todo um mundo do seu clube de coração. “Tenho aqui histórias rocambolescas”, segreda Tó Manel.
A camisola de António Pedro Costa “Cardia” de 1922. O emblema que navegava na chaminé da traineira Santa Isabel de Inocêncio Rato, no mar desde 1919, que encalhou, resgatado e oferecido pelo sobrinho mergulhador do mestre da embarcação. Meias, calções e camisola da equipa de futebol de 1935. Caneleiras, malas e botas do hóquei em campo de 1938. O equipamento completo do basquetebol e do voleibol de 1979, os patins do hóquei dos anos 1960. A bola que deu o primeiro título ao Leixões no futebol em 1938. As botas de Oliveirinha que marcaram golo na final da Taça de Portugal em 1961 no estádio das Antas – o Leixões ganhou por 2-0. Tudo bem estimado, arrumado, aprumado. Tó Manel exibe o que juntou ao longo de 50 anos. É um amor imenso. “A chama que está dentro de nós e a dedicação que temos ao clube da terra”, resume.

Em Guimarães, Carlos Freitas, Kalicas como é conhecido, também não faz por menos. À porta de casa, tem um vaso com relva do Jamor do dia em que o Vitória ganhou a Taça de Portugal, em 2013. Tirou foto com o troféu, baixou-se, arrancou erva sagrada, plantou-a quando chegou a casa às quatro da manhã. Houve tempos em que levava essa relva quando ia de férias, agora já deixa que a vizinha a regue quando se ausenta. Na varanda, uma bandeira do clube, em casa, numa sala que compôs há 25 anos, pinceladas feitas a espátula pelas suas mãos, montou um museu dedicado ao Vitória com camisolas, fotografias, recortes, cadeiras do estádio que iam para o lixo, vitrinas com peças, bar ao fundo. “Sei a história de cada camisola.” São mais de 300 e outras tantas guardadas. À mostra tem a amarela do guarda-redes Neno, a que veste no mural desenhado em sua homenagem no estádio. “É única e especial, foi ele que me deu.” Um tesouro autografado. Foi Neno que o desafiou a entrar num programa sobre adeptos da Sport TV e o seu museu saiu do anonimato.

João Rodrigues Freitas também apareceu na televisão. Na época 2005/06, lançou uma caderneta de cromos de todas as camadas e modalidades do Espinho, futebol, voleibol, andebol, natação, polo aquático, tudo o que ali se jogava na altura. “Fui a primeira pessoa de Portugal a lançar cromos de um clube”, assegura. Teve honras de primeira página do JN de domingo, presença na “Praça da Alegria” e no “Portugal em Direto” da RTP. Foi um sucesso, oito edições de cromos para a história do clube. “As papelarias pediam-me cromos, havia quase 30 pontos de venda em Espinho e freguesias”, recorda.
Costuma dizer, e é a sério, que tem 26 horas por dia para falar do Espinho. “Pelo meu Espinho, vou ao fim do Mundo.” Também não está a brincar. Guarda recortes de jornais em micas que coloca em capas catalogadas nas lombadas. Muitos dossiês em armários. Passou anos a recolher toda a informação sobre o Espinho, tem 123 presenças registadas na Biblioteca Municipal do Porto em 2011 e 2012. Entrava às nove da manhã, saía quando as portas fechavam, levava sandes para não perder tempo. Por vezes, no regresso de comboio, absorto no material encontrado, ia parar a uma ou duas paragens mais adiante.
Carlos Freitas admite algumas loucuras. Casou-se num sábado e no domingo estava a ver um jogo do Vitória. Quando o filho, Diogo, nasceu prematuro, e lhe deram duas horas de vida, pediu a certidão de nascimento, deixou o hospital de São João, no Porto, para ir a Guimarães tratar do cartão de sócio – hoje Diogo tem 26 anos e uma paixão pelo Vitória. “Sou feliz por ter este espaço”, diz Carlos Freitas. Nota-se bem. Por ali, têm passado amigos, jogadores, dirigentes, treinadores, entre os quais Rui Vitória.
“É amor, deixo obra”
“Aqui há mais”, avisa Tó Manel. Muito mais. A camisola de Tibi, guarda-redes do Leixões e da seleção, de 1969. Peças curiosas feitas pelo senhor Manuel, marceneiro e “grande leixonense”, em molduras de vidro e madeira. Um relógio à Leixões usado por um palhaço do circo Cardinali, natural de Matosinhos, nos espetáculos cá e lá fora. A bola oficial da maior recuperação em competições europeias em 1961. “O Leixões foi o primeiro clube em Portugal a recuperar de uma diferença de quatro golos”, explica. O alfinete oferecido aos sócios no décimo aniversário do clube, em 1917. A bandeira original em triângulo em seda de 1945, o galhardete do jogo com o Celtic em 1962.
“O Leixões foi fundado por ingleses, foi o primeiro clube a ter senhoras a praticar ténis, em 1908.” Quando tinha seis anos, a mãe ofereceu-lhe um porta-chaves do Leixões. Mais tarde, na tropa, encontrou um igual, num metal ligeiramente mais escuro, num centro comercial na Costa da Caparica. Em miúdo, colava a ver os jogos de voleibol no pavilhão Siza Vieira. A coleção começou aí, ainda criança, enchendo o quarto. “A maluqueira começou, a panca surgiu.”

Na garagem, João Freitas tem camisolas e cachecóis à vista, alguns objetos do clube, a chave do antigo pavilhão de voleibol, fotografias a preto e branco de algumas equipas, a de 1960 está lá. “É o que há.” Guardado no sótão, em gavetas, armários e caixotes, tem mais objetos. Espólio de anos, que foi guardando, e dois livros. No primeiro, “100 anos d’alma vareira”, sobre o futebol, lançado em 2015, embrenhou-se em resultados de jogos, classificações, estatísticas, leu mais de 53 mil jornais. “Não há clube em Portugal que tenha um livro como este”, frisa. Fotografias, resultados dos 100 anos, os 100 jogadores com mais jogos, com mais épocas, com mais golos, os homens que fizeram história dentro e fora do campo, apontamentos e curiosidades. Capa dura, papel de qualidade, 343 páginas.
O segundo, “Vólei é do Espinho” no título, “enciclopédia completa do voleibol do S. C. Espinho” no subtítulo, lançado em 2017, foi prefaciado por Luís Montenegro, agora primeiro-ministro. O trajeto de 76 épocas, os jogadores Miguel Maia e João Brenha, os 161 atletas campeões, dados e estatísticas época a época. Cada livro pesa 2,5 quilos certinhos. Edições de autor, a expensas suas. Tanto tempo e tanta dedicação. “Não perdi, deixei de ganhar, mas não importa, é amor”, comenta João Freitas, que não faz contas. “É amor, deixo obra.”
Representou o Espinho nos juvenis e nos juniores com a camisola às riscas pretas e brancas com um tigre bordado ao peito. Sócio número 663, fez parte da direção durante nove anos, foi vice-presidente para o voleibol. E emociona-se, sente-se a mágoa, o desalento. O Espinho, no futebol, não joga em casa, a competir nos distritais. “Não temos campo há oito épocas.” Não vai aos jogos da bola em que a equipa joga em casa fora dela. “Não tenho vergonha de chorar pela mágoa de não termos estádio, de irmos jogar a campos emprestados”, desabafa com o coração fora do peito. Fez a promessa de ir a Fátima a pé depois do pontapé de saída no relvado do novo estádio. “Tenho o processo de toda a história do estádio de 1973 até ao dia de hoje.” Mais recortes em capas.

Nas camisolas, as mais antigas em cima, as mais recentes em baixo, a de Quaresma também lá está, Carlos Freitas tem a camisola da vitória da Taça, nunca lavada, que saiu do corpo do jogador Addy diretamente para o seu museu. Tem outra de Tomané, agora no Farense, padrinho do seu filho mais novo Dinis. Tem bolas assinadas, é fã de Vítor Campelos, que treinou o Vitória.
Há dois meses que Carlos Freitas é funcionário do clube, concorreu a uma vaga, entrou para a parte do armazém, depois de ter trabalhado em agenciamento de jogadores. O bichinho veio do pai e entranhou-se nos filhos. Às propostas de compra, responde que a coleção não tem preço. Não vende nada. “São recordações.”
Tó Manel tem tantas peças. As luvas de João Fonseca dos anos 1980. Equipamentos e troféus de João Faneco, formador de jovens talentos já falecido. Toucas de natação, camisolas de atletismo, quadros com o emblema em ponto de cruz, canetas, isqueiros, guarda-chuvas, louças, vinhos, sabonetes. O primeiro cartão de sócio, uma réplica do Campo de Santana, de 1936 a 1963. Relva da inauguração do Estádio do Mar em 1964, levantada em junho de 2003. No teto do seu museu, Tó Manel tem máscaras do tempo da pandemia com padrões do clube. “Usei-as todas, fazia os desenhos, um amigo fazia as máscaras.” Quem lhe conhece a paixão, oferece-lhe objetos como dois ovos de avestruz com o emblema do Leixões vindos de África do Sul. “É mesmo uma paixão”, confirma o sócio número 466, que confessa que gostaria de ter a toalha de praia oferecida na Taça conquistada em 1961.
Leixonense dos pés à cabeça, com o futebol na II Liga, canta vitórias e sofre. Sempre com o seu museu de portas abertas a quem o quiser visitar. Com direito a visita guiada.