
É uma espécie de película gigante que cobre tudo no nosso corpo, da cabeça aos pés, órgãos, músculos, tendões. E pode ter um papel bem maior do que se imaginava, nomeadamente na dor crónica. Há, pelo menos, uma certeza: o movimento e o alongamento são cruciais.
Já todos sentimos dor lombar, aquela rigidez no fundo das costas ao cabo de horas a fio sentados à secretária. Ou tensão nos ombros e no pescoço. E a resposta pode, afinal, estar na fáscia. Esta é uma parte do nosso corpo ignorada ao longo dos tempos, mas que tem vindo a suscitar grande interesse nos últimos anos. Por uma razão simples: acredita-se que pode ser a causa (e a solução) para muitas das dores não específicas que temos, sobretudo nas costas. Tanto que investigadores pelo Mundo se têm dedicado a estudá-la, há até um Congresso Mundial de Fáscia. E, eis um alerta importante, este é ainda um universo com muitas respostas por descobrir.
Comecemos pelo princípio. O que é a fáscia? É uma espécie de película gigante que envolve tudo no nosso corpo, músculos, tendões, órgãos. Está em toda a parte, logo abaixo da pele, mas também em camadas mais profundas. Vai da cabeça aos pés, mas também de uma mão à outra e está em espiral por todo o corpo. É um enorme tecido conjuntivo, esbranquiçado, em forma de teia, e contínuo. “Para simplificar, olhemos para a fáscia como um saco que une toda a nossa estrutura”, aponta Ricardo Ribeiro, fisiologista do exercício no Centro Clínico Andar, em Lisboa, que dá um exemplo prático: “Vamos imaginar um frango, quando lhe tiramos a pele, junto ao músculo vemos uma película, aquilo não é nervo, é a fáscia”.
A questão é que a sua importância parece ser maior do que se adivinhava há umas décadas. Tiago Lopes, médico fisiatra e coordenador da unidade de Medicina Regenerativa da Clínica Espregueira no Porto, tenta resumir. “Ela é composta sobretudo por colagénio e tem funções estruturais e funcionais. Serve para dar suporte, é como se funcionasse como os alicerces da nossa estrutura. E, se olharmos para a fáscia que envolve o tecido muscular, ela tem uma contribuição enorme no que diz respeito ao movimento, ajuda a transmitir forças entre músculos e articulações. Também tem a função de separação, para evitar a fricção entre os músculos e os restantes tecidos, contém um líquido intersticial que permite o deslize entre estruturas.” Nos últimos tempos, percebeu-se que terá também um papel na sensibilidade à dor, “algo que tem sido amplamente discutido”.
“O papel estrutural da fáscia é conhecido, o que se está a debater agora é o facto de a fáscia ser capaz ela própria, como tecido isolado, de desencadear quadros de dor”
Tiago Lopes, fisiatra
“O papel estrutural da fáscia é conhecido, o que se está a debater agora é o facto de a fáscia ser capaz ela própria, como tecido isolado, de desencadear quadros de dor”, indica o fisiatra, que ressalva que a ideia ainda não é totalmente aceite pela comunidade científica. O que se pressupõe é que este tecido conectivo tem terminações nervosas capazes de transmitir dor. “Tem-se vindo a associar a fáscia a quadros de dor crónica, em que não se percebe a causa, nomeadamente lombalgias.” Mas qual é a relação? Ora, percebeu-se que este tecido incrivelmente elástico, que envolve os músculos, funciona quase como uma esponja. Quando está hidratado, é flexível, desliza facilmente e facilita a mobilidade, e quando resseca, fica rígido e condiciona o movimento. “Nestes modelos hipotéticos, acredita-se que essa rigidez e redução de mobilidade podem levar a quadros de inflamação crónica, que desencadeiam dor miofascial ativa.” A dor miofascial é “nada mais do que pontos gatilho a nível muscular que causam dor”.
A dúvida reside em como saber se a dor é muscular ou da fáscia. Afinal, fáscia e músculo são praticamente inseparáveis. No documentário alemão “Fáscia Fascinante”, disponível no YouTube, há investigadores que defendem que os recetores nervosos da fáscia têm mais influência ainda do que os recetores do músculo e que a fáscia será por isso uma fonte importante de dor e da perceção corporal. Segundo João Tedim, fisioterapeuta, osteopata e professor na Escola Superior de Saúde do Politécnico do Porto, “tem-se vindo a perceber que a dor é mais miofascial, na fáscia que envolve o músculo, do que propriamente muscular”. “Este tecido é o primeiro centro de respostas inflamatórias sempre que há um problema a nível local”, refere Tedim, que também dá formação a fisioterapeutas onde aborda a fáscia. “Na fisioterapia e na osteopatia trabalhamos com a dor, com a interpretação dos sintomas. E ignorar um elemento que faz a ligação entre todos os elementos do corpo não faz sentido.”
“Tem-se vindo a perceber que a dor é mais miofascial, na fáscia que envolve o músculo, do que propriamente muscular. (…) este tecido é o primeiro centro de respostas inflamatórias a nível local”
João Tedim, fisioterapeuta e osteopata
O segredo para evitar ou reduzir a dor miofascial parece estar em manter a fáscia hidratada, flexível, elástica. Mas, antes disso, importa perceber o que a torna rígida. A falta de movimento é o principal fator (mas o excesso de exercício, nomeadamente em atividades intensas como o crossfit, também pode desencadear inflamação), a ausência de exercícios de alongamento (alongar tem um efeito de relaxamento no tecido da fáscia), a má postura. Até o stress emocional, ao gerar pontos de tensão e contração no corpo, parece contribuir para que a fáscia fique enrijecida. Hoje, há já uma série de técnicas para libertar a fáscia, para tentar voltar a dar-lhe elasticidade, mobilidade. Neste ponto, João Tedim chama a atenção para um dado importante, é que sendo a fáscia um tecido contínuo em todo o corpo, que está todo conectado, “ao libertarmos um ponto, isso vai refletir-se noutros”. Aliás, o norte-americano Thomas Myers, autor do livro “Trilhos Anatómicos” e um dos pioneiros no tema da fáscia, tem essa mesma tese. Defende até que o facto de termos uma dor lombar não significa que a origem da dor seja na região lombar. A teoria chegou a ser testada na Universidade Goethe de Frankfurt, com recurso a exames de imagem e não só. Verificou-se a amplitude de movimento que conseguimos na cervical antes e depois de alongarmos a parte posterior das pernas. “O que se concluiu é que a mobilidade na cervical aumentou depois do alongamento das pernas. E não há músculo que ligue a perna ao pescoço, isto demonstra a ligação que existe pela fáscia e a importância de olharmos para o corpo como um todo. Havendo retração em determinadas zonas, vai condicionar o movimento como um todo”, sublinha Tedim.
Olhemos, pois, para as técnicas e terapias para tratar a fáscia, que são muitas e variadas. As terapias manuais, que consistem em criar pontos de pressão na área da dor e na mobilização manual dos tecidos, são uma delas. Também a acupuntura parece ter resultados. Mas olhando para lá disso, segundo o fisiologista do exercício Ricardo Ribeiro, “há muitas vantagens no exercício”. E há técnicas já estabelecidas. “Usa-se muito umas pequenas bolas com pontos irregulares para pressionar as áreas contraídas e ajudar a relaxar a fáscia. Também os foam rollers, que são rolos de massagem que parecem tubos, e que agora se veem muito à venda. Usa-se para libertação miofascial na zona onde há desconforto e, por consequência, para relaxar as fibras musculares. Até antes do exercício, porque, se a fáscia estiver muito rígida, os próprios músculos não têm espaço para se expandirem.”
O ioga e o pilates também são atividades que ajudam a evitar a rigidez miofascial. Juliane Lizotti, fisioterapeuta e professora de pilates no Porto, despertou há alguns anos para o tema, quando decidiu fazer uma formação (a que se seguiram outras). “Há décadas, achava-se que a fáscia era só um tecido de revestimento, e percebe-se agora que ajuda a promover o deslizamento entre os músculos, que é móvel, e que trabalhar alguns movimentos de alongamento e de torção ajuda a libertá-la.” Mais do que isso, destaca Juliane, “o movimento promove a hidratação da fáscia, cura-a e desinflama-a”. “Todo o movimento é bom, fazer ginástica, alongar. Mas há alguns ainda mais eficazes, é o caso da técnica da bolinha que desliza sobre a pele e que já usei em algumas aulas. Ou saltar à corda.”
Há certezas e dúvidas, vários estudos já feitos. O futuro da investigação parece passar agora por tentar perceber a ligação entre a fáscia e o sistema nervoso. É um mundo por descobrir.