Valter Hugo Mãe

Antónia


Os abacates agora aparecem sempre verdes mas podres. Não há o que se faça, disfarçados a pedir mais tempo afinal não se podem comer, parece que se suicidaram, mortos por dentro para escapar à nossa gula. Isto é algo que arrelia a minha mãe. Abacates que nos mentem a mais de cinco euros ao quilo arreliam a minha mãe e precisam de ser combatidos a todo o custo.

Por vezes, arranjamos pitaias vermelhas, lindas como flores gordas. Não tenho ideia de como saber quando estão maduras. Por intuição, deixamos três dias à espera e abrimos na pura esperança. As pitaias, que sabem a pouco, enfeitam muito e têm uma frescura algo impune. Quero dizer, não fazem mal a nada. A mim, qualquer fruta me aleija. É da acidez ou do muito açúcar, fico com enjoos, tonturas, suores. A minha mãe, por outro lado, come fruta sem qualquer pena. Tem estômago de lagarta da maçã. Quanto mais fruta come, mais viçosa e alegre.

Vamos no carro a cantar a casa portuguesa da Amália e eu não me importo de dizer palavras mal educadas porque as palavras mal-educadas fazem justiça ao nosso sofrimento e transformam-no em algum nico de alegria. A minha mãe queria zangar-se de o fazer mas, com o tempo, aprendeu a importância de respondermos à vida. Muito do que silenciamos calcifica a garganta, o coração ou as tripas. Cantar Amália com palavras mal-educadas parte muita pedra por dentro do peito e afina a voz mais que rouxinóis. Quando vamos ao restaurante onde se come quanto se quer, cantamos como reis de uma monarquia só nossa, e não queremos súbditos nem cidadãos mais puros do que nós. Na verdade, estamos bem porque aprendemos a estar bem sozinhos. Por isso, o nosso país nem vem nos mapas. Só se lá chega por maturidade, por amor, por vontade de existir.

Hoje, a minha mãe completa 85 anos e estamos todos de bandos de passarinhos a cantar. Julgaria normal que o presidente da República telefonasse a dar-lhe os parabéns, porque as mães são as mais claras provas da existência de Deus e porque os presidentes só são mesmo eleitos se chegarem aos corações das mães. Hoje, vamos bailar igual a crianças perfeitas, porque são perfeitos os filhos ainda amados. Eu sei bem que são perfeitos os filhos ainda amados. Sinto isso. Esse privilégio, a sorte sem fim de chegarmos a esta festa tão linda.

Vou pôr o cão a ladrar o dia inteiro na varanda. Quero que ele diga a toda a gente que somos em festa e que mordemos se alguém vier perturbar o tamanho desta felicidade.

O coração da minha mãe, hoje, é o sol do Mundo, o centro do universo, tudo o mais é arredor.