Adília
O que Adília Lopes procurava era simples mas não lhe era possível. A normalidade, de que ela escancarava os modos como ninguém, escapava-lhe por todos os lados, aflita sempre com a saúde mental e entregue acima de tudo à fé. Tudo quanto lhe seria fundamental estava no amor, na construção da família, o quotidiano de um lar, os livros contando histórias. No entanto, a “neurose esquizo-afectiva”, como ela mesma a classificava, deixava-a à deriva como imprestável para algo que a maioria de nós conquista por defeito. A vida, para a querida Adília, haveria de ser solidão. Uma estranha solidão, porque mais e mais gente a adorava, e sempre mais ela necessitava de refúgio e se escondia.
A morte de Adília Lopes é do tamanho da pureza que havia. É a morte da última criança que chegou aos 60 anos explicando sua vida em versos de cristal. Uma criança de transparências deslumbrantes, a dizer-nos as verdades mais essenciais que, por incúria, esquecemos. Sobre o afecto, claro, sobre as boas pessoas e sobre saudade, sobre Sophia e Mariana, sobre gatos e baratas e estar em casa e ter depressões, sobre a casa que esvazia com a morte paulatina da família sem que mais família se faça.
A Inês Meneses bem diz que antes ria com os poemas que agora a fazem chorar. Com a Adília, atentas, todas as leituras são comoventes porque nunca escreveu senão pelo mais íntimo de si mesma. A sua obra é um diário e mesmo o que não se lhe parece é seu parente. Tudo é diário. Anotação dos dias, que é o mesmo que anotar a solidão e essa cada vez mais convicta condenação a não poder ser amada.
Para mim, que tive o privilégio de conhecer Adília há quase 30 anos, e muito convivemos e trabalhámos juntos, toda a sua poesia é um pranto. Um lamento como o de Mariana, que se faz de encontro a um homem que não chega, que se faz de encontro a um sonho gigante que lentamente se sabe que não tem como se realizar. Todos os seus poemas me podem fazer chorar e sempre assim foi. Desde as suas primeiras perguntas, quando se preocupava com detalhes que sempre tinham que ver com sua figura amorosa e sua dignidade perante Deus. Hoje, sinto, aquilo que mais devia ter-lhe dito e que julgo nunca ter sido capaz de o fazer, era que sua dignidade não haveria de ser humilhada. A criança que chegou aos 60 anos não podia, por definição, desiludir Deus algum. Ela era a heroína de uma história de encantar. A poetisa encantada que fez da cidade um lugar pequenino que entrou inteiro para o coração.
*O autor escreve de acordo com a anterior ortografia