A poesia de cada dia nos dai hoje
A vida é um sopro. Um frágil equilíbrio entre o passado que carregamos, o presente que nos escapa e o futuro incerto.
Quando somos jovens, mesmo quando o Mundo nos parece assustador, tudo é mais fácil. O futuro é uma estrada tão comprida que ninguém lhe adivinha o fim. Então o tempo, que tudo devora, vai encurtando o caminho e cansando os corações mais delicados que choram, sangram e olham muito para trás. São os que não foram contaminados pelo modo funcionário de viver, engolindo o que sentem, como se não sentissem quase nada. Não imagino como esses corações empedernidos, calcificados pelo desencanto, percorrem as pedras que pisam. Quero acreditar que, sozinhos em casa, olham por cima do ombro para o passado perdido onde jaz tudo aquilo que poderiam ter sido, mas não sei se o fazem. Só sei que nunca farei parte dessa tribo que escolheu o lado insensível da vida: os desligados, os blindados, os androides inventados. Serei sempre da outra, a que nunca se conforma com o poucochinho de uma existência parda.
Adília Lopes morreu no penúltimo dia do ano numa cama de hospital, vítima de doença prolongada. Era uma poetisa extraordinária. Que me perdoem os militantes fanáticos da luta pela igualdade entre homens e mulheres nos preciosismos de linguagem, no meu entendimento do Mundo poetisa continua a vigorar. A poesia tem género, magia e precisão. A poesia é a radiografia das almas que têm coragem de se despir e força para dizer a verdade.
A obra poética de Adília é toda verdade, e as suas fraquezas, expostas com tanta candura e sinceridade, tornavam mais fortes aqueles que a liam e se sentiam irmãos das suas angústias, tristezas e inseguranças. O adjetivo pueril seria inexato, porque existe na sua pena a intenção consciente de ver o Mundo pelo mágico véu da ingenuidade. Adília sabia ser pueril, lembrando Marilyn Monroe sobre quem Artur Miller escreveu que fazia papéis de burra ingénua e se divertia com isso. Tal consciência é um sinal de pureza e de inteligência.
“Não sei se me interessei pelo rapaz/ por ele se interessar por estrelas/ ou se me interessei por estrelas/ por me interessar pelo rapaz.”
Perdemos talvez a mais ternurenta da língua portuguesa, de uma ternura que o novo mundo não endeusa, mas que, no fundo, inveja. Fica uma obra traçada de alto a baixo pelo romantismo triste e estoico, essa doença que nunca entendi ser voluntária ou inevitável.
São duas da manhã e não consigo dormir a pensar na Adília. Sempre gostei de acariciar as páginas dos seus livros, tantas vezes comovida com a sua voz, que ressoava como minha. É esse o maior talento da poesia, dar-nos a alegria de nos lermos nas palavras dos outros. “Quando partires/ se partires/ terei saudades/ e quando ficares/ se ficares/ terei saudades./ Terei sempre saudades/ e gosto assim.”
Para ser poeta é preciso abraçar a tristeza, escutar o silêncio, lamber as lágrimas, perder a cabeça e deixar que nos desarranjem o coração.
“A minha história é outra/ e começa agora./ Estou sempre a começar.”
A nossa também, a cada manhã que nos espera, quando o sol ofusca as estrelas, mas não a de Adília Lopes.