A depressão aos primeiros passos

Psicólogos e pedopsiquiatras alertam para um número crescente de bebés e crianças pequenas com quadros depressivos. A irritabilidade excessiva pode ser sinal de alerta, mas a apatia e o desinteresse também. O diagnóstico é complexo e exige análise cuidada.

Iuri, três anos, tinha um desenvolvimento adequado para a idade. Porém, não explorava o ambiente em redor, quase não tinha iniciativa, era muito pouco expressivo. Acresce que, quase de um dia para o outro, começou a fazer birra atrás de birra, a apresentar elevados índices de agressividade. A mudança coincidiu com uma separação súbita dos pais e um período de institucionalização. Óscar foi visto na pedopsiquiatria ainda em bebé. Tinha um atraso do desenvolvimento, apresentava um evitamento do olhar, imensas alterações de sono, a mímica facial era paupérrima. Com o tempo, percebeu-se que vivia num contexto de violência doméstica e a mãe estava com uma depressão. Ele também. Luana, bebé de meses, chegou à pediatria com um quadro de recusa alimentar. O fastio repentino tinha, no entanto, uma explicação mais profunda: a doença súbita da pessoa que dela cuidava desde sempre, mas que, por culpa das questões de saúde, teve de se afastar. Os nomes aqui usados são todos fictícios, como se impõe num tema tão sensível. Quanto às histórias, foram relatadas por psicólogos e pedopsiquiatras ouvidos pela “Notícias Magazine”, que alertam para o aparecimento crescente de quadros depressivos nos primeiros anos de vida. Uma realidade pungente, que continua a escapar ao radar de uma parte significativa da população.

Joana Mesquita Reis, pedopsiquiatra na Unidade da Primeira Infância da ULS São José – Hospital Dona Estefânia (Lisboa), esclarece. “A perturbação depressiva também se manifesta na primeira infância e, na prática, apresenta um conjunto de sintomas muito semelhantes aos de um adulto deprimido. A primeira vez que surge a descrição do bebé deprimido é na década de 1940, por René Spitz [psicanalista austríaco, especializado em psicologia infantil], que usou o termo depressão anaclítica para designar a reação do bebé à separação do cuidador. Spitz descreve bebés que, neste contexto, ficavam muito irritados, protestavam muito e que, depois, caso não houvesse uma reaproximação da figura de vinculação, começavam a entrar num quadro mais crónico de apatia e desinteresse.” Mas nem só crianças separadas dos seus cuidadores apresentam a sintomatologia descrita. “A depressão do bebé decorre predominantemente de duas situações: perda do cuidador privilegiado ou insuficiência crónica de cuidados.” Com uma ressalva importante. “Nalguns casos, até são bebés bem cuidados do ponto de vista funcional, em termos de higiene e de alimentação, por exemplo, mas têm falta de cuidados relacionais.” Simplificando: de amor, carinho e atenção constante.

Foquemo-nos, por agora, nos sintomas. Que não diferem muito dos tais quadros descritos por Spitz. Joana Mesquita Reis detalha a questão. “No caso dos bebés, quando há uma rutura dos cuidados relacionais, comummente há uma fase inicial de choro, de protesto, como que a sinalizar a angústia. Quando esta não é atendida, o que acontece frequentemente é a evolução para um quadro de desinteresse, de retirada, de desamparo, de desistência da criança em relação ao outro. São crianças com pouca vitalidade, com evitamento do olhar, que não exploram o meio e não têm interesse em brincar. Pode até haver atrasos globais de desenvolvimento.”

Joana Mesquita Reis, pedopsiquiatra na Unidade da Primeira Infância da ULS São José (Paulo Alexandrino)

Clementina Almeida, psicóloga clínica especializada em bebés, constatou isso mesmo, na observação que fez no Hospital Pedro Hispano (Matosinhos), para a tese de doutoramento sobre o impacto da violência doméstica no desenvolvimento do bebé (2014). “Uma parte destes bebés tinha um choro muito intenso, como se estivessem a tentar acordar aquelas mães, a dar mais na relação para que a mãe conseguisse responder. Depois, se a mãe melhorasse, o bebé também melhorava. Noutros casos, era como se o bebé desistisse, alguns até começavam a apresentar um nível intelectual mais reduzido, quando comparados com outros cujas mães não estavam deprimidas. Apresentavam um leque insuficiente de expressões faciais, eram alheios à estimulação, tinham um olhar baço.”

Diana Alves, docente na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, acrescenta outros sinais a considerar, sobretudo em crianças em idade pré-escolar. “A irritabilidade e labilidade emocional são sintomas que se destacam nesta faixa etária. Pode ainda haver uma alteração nas rotinas do sono, uma mudança no comportamento alimentar, falta de energia, uma aparente exaustão, uma lentificação súbita no uso de habilidades cognitivas.” Noutros casos, o sofrimento psíquico pode levar à somatização, a um aumento da agressividade, a uma regressão em competências previamente adquiridas (na marcha, no desfralde, na retirada da chupeta, por exemplo).

A psicóloga, que também integra o grupo de investigação em Desenvolvimento e Educação do Centro de Psicologia da Universidade do Porto, ressalva, no entanto, que o processo de diagnóstico “requer sempre muito cuidado e cautela do ponto de vista da análise”. “São quadros em que regra geral há uma multicausalidade e uma grande exigência do ponto de vista do diagnóstico.” Alda Mira Coelho, pedopsiquiatra no Centro Hospitalar Universitário de São João e professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, acrescenta que “só se pode falar em depressão propriamente dita quando há pelo menos cinco sintomas, durante duas semanas, de forma consistente”.

Perdas e sofrimento psíquico dos cuidadores

Mas o que é que explica que crianças tão pequenas possam apresentar quadros depressivos? “Muitas vezes tem a ver com a ansiedade da separação”, responde a docente. “Sabemos que a vinculação é fundamental para desenvolver a segurança dos afetos e que é altamente protetora em relação ao desenvolvimento de psicopatologias. A criança pode sofrer muito com as separações e com a instabilidade de vínculos. Isto é particularmente evidente no caso de situações de perda [como a morte de um cuidador]. Mas também pode acontecer em casos em que a criança nunca sabe quando um dos progenitores vai desaparecer.” O risco também aumenta quando o cuidador principal está, ele próprio, a braços com um quadro depressivo (ainda mais se este não for devidamente identificado e tratado). Vários estudos, ao longo dos anos, têm estabelecido uma relação direta entre o sofrimento psíquico dos pais e o surgimento posterior de problemas emocionais e cognitivos nos filhos. Clementina Almeida, certificada em saúde mental infantil no Reino Unido e nos Estados Unidos, acrescenta outras causas possíveis. “Filhos criados em ambientes de abuso têm sempre um risco acrescido de desenvolver psicopatologias. E depois há outras situações mais passageiras, como as perdas, até de animais de estimação, divórcios, situações de stress no geral.”

Alda Mira Coelho lembra, no entanto, que as depressões nestas idades são geralmente “mais reativas e reversíveis”. “A depressão endógena, provocada por fatores hereditários, dificilmente se manifesta nesta idade.” Ainda assim assume-se preocupada com o tema, sobretudo porque o modo de vida moderno é cada vez menos compatível com o tempo para cuidar. “As crianças entram muito cedo nos infantários, os pais têm cada vez menos tempo para estar com os filhos, para brincar, para valorizar, para estar com a criança, para dar segurança. Tudo isto são fatores que não favorecem uma vinculação segura, que ainda é o melhor fator protetor contra o desenvolvimento psicopatológico, incluindo a depressão. É preciso reforçar esta ideia: quanto mais segura uma criança se sentir, mais protegida está. E cada vez mais assistimos a casos de crianças que têm pouca segurança nos vínculos.”

Quer isto dizer que a prevalência dos quadros depressivos em bebés e crianças pequenas está a aumentar? Joana Mesquita Reis recorda que “em Portugal não há estudos epidemiológicos representativos que avaliem a prevalência de depressão no bebé” e que haverá certamente “muito mais casos do que aqueles que são reconhecidos”.

Desde logo, lá está, pela dificuldade no diagnóstico. “A maioria dos casos não nos chega logo”, constata. “Quando há uma rutura com a figura de vinculação [a morte de um progenitor, por exemplo], regra geral até nos chegam mais precocemente. Mas quando há uma insuficiência crónica de cuidados, sejam bebés que nascem em contextos mais desfavorecidos, seja quando há uma quadro de depressão no cuidador principal, em que o bebé pode não chegar a ter uma relação inicial de qualidade, muitas vezes temos quadros mais silenciosos, em que não há uma oportunidade para o protesto.” Ainda assim, admite que a perturbação depressiva “tem tudo para estar a aumentar” também entre os mais pequenos. “Desde logo porque há mais casos noutras faixas etárias, verificando-se um aumento da incidência também nas grávidas e puérperas, o que em si mesmo é um fator de risco acrescido.” Clementina Almeida também não tem dúvidas de que, nos últimos anos, lhe têm chegado cada vez mais bebés com perturbações depressivas. A nível mundial, os estudos realizados apontam para uma prevalência entre os 0,5 e os 3% (nas crianças até aos cinco anos).

Resta uma questão: como se tratam as depressões nesta idade, quando os antidepressivos estão fora da equação? Desde logo, com psicoterapia. Alda Mira Coelho sublinha que é fundamental “avaliar os fatores envolventes e ajudar os pais e a família a desenvolver recursos para melhorar o estado emocional da criança”, o que em grande medida passa pela “restauração de vínculos securizantes”. Clementina Almeida também salienta a importância da intervenção com os pais. E dá um exemplo concreto. “No caso de uma mãe deprimida, raramente conseguimos trabalhar com a criança sem trabalhar com os pais. Temos de curar o bebé também através da cura da mãe.” Quanto às consequências de não tratar um quadro depressivo surgido nos primeiros anos de vida, podem ser graves e duradouras. Joana Mesquita Reis deixa o alerta. “Hoje em dia sabemos que quando não há uma intervenção atempada ficam cicatrizes no cérebro, alterações estruturais e neuroquímicas que condicionam o aparecimento de quadros psicopatológicos no futuro, tais como perturbações depressivas, de comportamento ou de personalidade.” Por isso, Alda Mira Coelho insiste: “É importante que todos os pais tenham em conta esta necessidade de vinculação e a importância da linguagem dos afetos. É fundamental a criança sentir-se amada e haver uma continuidade nas ligações”. Clementina Almeida reforça o apelo. “O mais importante é os pais olharem para si mesmos e evitarem repetir padrões. O maior presente e o maior seguro de saúde que podemos dar aos nossos filhos é resolvermos os nossos traumas, para que não sejam eles a resolvê-los por nós.”