
Os modelos da psicoterapia contemplam diferentes abordagens para tratar os pacientes com distúrbios alimentares. No entanto, a correlação entre o desenvolvimento destas doenças com episódios traumáticos ganha cada vez mais relevância. Clínica no Porto foca tratamento na superação do trauma.
O desenvolvimento de perturbações do comportamento alimentar (PCA) pode ser influenciado por fatores genéticos, sociais, neurobiológicos, ambientais, de personalidade, mas não só. Vários estudos estabelecem uma relação positiva entre um episódio vivido como traumático e a sintomatologia de uma patologia alimentar. “Há uma grande incidência entre acontecimentos traumáticos, como por exemplo abuso emocional, físico e sexual e o desenvolvimento de patologia alimentar quase como uma defesa”, explica ao JN a psicóloga clínica Ana Aires Martins, que trabalha há 18 anos com esse tipo de casos. “Há uma incapacidade na regulação emocional e essa dificuldade vai ser colmatada através da patologia alimentar”. Ainda que a palavra trauma possa remeter para um evento de extrema violência, a pedopsiquiatra Joana Saraiva esclarece também que “pequenos episódios de bullying ou um comentário isolado numa fase da vida em que o adolescente está a construir a sua identidade” podem atuar como um fator “disruptivo no crescimento e ser identificado como um episódio de trauma”. No entanto, o desenvolvimento do distúrbio alimentar ocorre quando há um “campo fértil” para isso, influenciado por múltiplos fatores.
De acordo com as profissionais de saúde, a bulimia, a anorexia e a compulsão são os principais transtornos alimentares que afetam os doentes.
Por sentir que a psicoterapia comumente utilizada nos diversos serviços do país não cumpria na íntegra o papel junto dos doentes, Ana Aires Martins tirou o sonho do papel e criou a Dismorphia, uma clínica no Porto especializada em perturbações do comportamento alimentar, imagem corporal e obesidade. “Para além da intervenção através diversos modelos de psicoterapia, cada um com o seu papel, este modelo vai mais além, valorizando o papel de episódios traumáticos no desenvolvimento e manutenção da patologia”, explica.
Segundo a especialista em Neuropsicologia, “nove em cada dez utentes têm um trauma associado ao desenvolvimento da PCA”. Por isso, a intervenção terapêutica passa por diversas técnicas, nomeadamente o EMDR (a Eye Movement Desensitization and Reprocessing, que significa dessensibilização e reprocessamento através do movimento ocular, é uma terapia que permite o acesso e o processamento das memórias traumáticas, tendo como objetivo alterar o modo como a memória é armazenada no cérebro para assim diminuir o sofrimento a ela associado), com vista ao tratamento dos momentos tido como traumáticos.
"Nove em cada dez utentes têm um trauma associado ao desenvolvimento da PCA" Ana Aires Martins, psicóloga
“Depois de identificar o trauma, é importante trabalhar o aqui e o agora, que permita olhar o futuro e avançar para uma vida em que não se esquece o trauma, mas aprende-se a dar-lhe um outro significado”, explica Joana Saraiva. A pedopsiquiatra trabalhou 25 anos no Centro Hospitalar do Porto e desde 2004 que acompanha crianças e adolescentes com PCA. Há dois anos deixou o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e integrou a equipa da Dismorphia. No SNS, o modelo de atuação “era mais abrangente em termos motivacionais e trabalhávamos para que a pessoa criasse uma identidade e se individualizasse”, na Dismorphia “há um trabalho de verbalização, mais específico e mais direcionado”, admite. Por isso, defende que esta abordagem acaba por ter “resultados mais favoráveis” para o doente, quando aliada à vontade de ultrapassar a patologia.
Motivados para ultrapassar a doença
No Centro Hospitalar Universitário de Santo António, também no Porto, uma equipa multidisciplinar promove um modelo de trabalho que consiste numa “abordagem motivacional” que, associada a outras estratégias psicoterapêuticas, visa “ajudar os jovens a tomar consciência de que existe um problema e conseguir motivá-los para a mudança”, explica o diretor do Serviço de Psiquiatria da Adolescência. Para João Guerra, abordar os episódios vividos como traumáticos pelos pacientes é importante e necessário no processo de evolução favorável da doença, mas o especialista acredita “que não se pode falar da cura do trauma como se existisse uma maneira de curar e com isso resolver um problema”.

(Leonel de Castro)
As patologias alimentares são caracterizadas por uma perturbação persistente na alimentação ou no comportamento relacionado com a alimentação. Os doentes sentem que têm controlo sobre a vida através da comida e a diminuição do peso é encarada como recompensa. Mas a desnutrição alimenta e perpetua a doença. Para a psicóloga Ana Aires Martins, o caminho da recuperação passa, numa primeira fase, por “eliminar os sintomas” da doença e depois “trabalhar a causa propriamente dita”, o que faz com que “a probabilidade de sucesso e não recaída seja muitíssimo maior”. No entanto, João Guerra alerta para o facto de esta ser “uma doença crónica, com períodos de agravamento e períodos de melhoria”, onde muitos dos pacientes “melhoram e evoluem para a cura da doença, mas uma percentagem significativa mantém períodos longos de flutuações, de recaídas e de melhorias”.
A partir das instalações no Porto ou via online, o tratamento na Dismorphia é levado a cabo por uma equipa que inclui as áreas da psicologia, psiquiatria e pedopsiquiatria, nutrição, terapia da fala, terapia ocupacional e também endocrinologia.
Anorexia e bulimia aprisionaram Joana e Pedro na gaiola dos distúrbios alimentares
Joana Guimarães tem 27 anos e vive com uma anorexia nervosa há cinco. A bulimia de Pedro Costa, de 28, manifestou-se no início do ano. Os dois reconhecem que a má relação com a comida e o com o corpo vem desde a infância, mas estas patologias são muito mais sobre saúde mental do que sobre alimentação.
Os ataques de pânico despertados pelo AVC da avó obrigaram Joana Guimarães, 26 anos, a procurar acompanhamento psicológico, mas rapidamente as consultas expuseram as inseguranças com o corpo e a alimentação restritiva a que se sujeitava em picos de stress. “Para fugir da minha cabeça focava-me na comida”, conta. Ainda que a anorexia nervosa estivesse a crescer como uma erva daninha desde a adolescência, foi quando a jovem, num estado de tristeza pela condição da avó, começou a emagrecer, que as coisas descambaram. “Comecei a perder peso naturalmente e aproveitei para perder mais e mais, até que de repente fiquei obcecada”, admite. Ao longo dos últimos cinco anos, marcados por “imensas recaídas”, Joana passou por várias fases no que diz respeito à comida: a dieta sem hidratos de carbono, a dieta dos cinco alimentos “puros” e até a dieta onde só comia pão. O receio de engordar apoderou-se dela e comer passou a ser encarado como um “pecado mortal”. A única coisa que sabia fazer era “perder peso e emagrecer”.
Durante muitos meses, a técnica de marketing viveu com a doença em segredo. “Tinha medo do que é que as pessoas pudessem achar e que me tratassem de forma diferente”, por isso “tentava ao máximo ir a eventos sociais”, fingindo uma normalidade que não existia. Até hoje, só dois familiares sabem da doença. “Contar ao meu pai e à minha prima foi o mais difícil deste processo todo mas foi também a melhor decisão, porque o que consegui foi mais apoio, mais colo e mais compreensão”, partilha. No entanto, das consequências de ter levado o corpo ao limite já ninguém a livra. “Tenho um problema renal, tomo medicação crónica, tenho má circulação e pernas manchadas. E também sou seguida por um reumatologista”.

(Leonel de Castro)
As perturbações alimentares não são só sobre comida, refletem muitas vezes questões psicológicas e emocionais, como traumas, ansiedade, depressão e baixa autoestima. Por trás da anorexia nervosa da jovem do Porto, está uma crise de identidade. “O facto de eu não saber o que é que eu quero, quem é que eu sou, estes problemas de identidade… Eram coisas que estavam dentro de mim e que estavam só à espera do momento certo para atacarem”. Com as consultas na Dismorphia, clínica especializada em Perturbações do Comportamento Alimentar, no Porto, Joana percebeu que a única forma de se “libertar” seria resolvendo as questões que a assombram. “Se eu não enfrentar os problemas, vou viver para sempre no ciclo de tentar desviar o meu pensamento e fazê-lo numa coisa que eu posso controlar, que neste caso é a comida”, explica. A recuperação é uma maratona e, apesar de a jovem ainda não conseguir ver a meta, a esperança de um dia poder viver sem as dúvidas que lhe assaltam o pensamento mantém-se viva. “Se conseguir achar que sou boa a fazer alguma coisa que não seja isto [controlar comida], acho que aí vou ser livre.”
"Cresci a usar comida como um reforço positivo para quando estava mal” Pedro Costa
Na vida de Pedro Costa, 28 anos, a comida teve sempre um papel importante no que diz respeito à regulação emocional. “Cresci a usar a comida como um reforço positivo para quando estava mal”, admite. Não havia horários para comer, nem quantidades controladas. Este comportamento conduziu-o a excesso de peso e a um corpo que não lhe servia, por isso há quatro anos começou uma dieta sozinho. “Restringia muito as minhas calorias e com o tempo fui diminuindo de peso, mas sentia-me sempre insatisfeito e com fome”, revela o jovem natural de Viseu.
Após quase um ano e meio à espera de uma consulta de nutrição no Serviço Nacional de Saúde, Pedro começou a ser acompanhado no processo de perda de peso. Aprendeu as regras e a importância de uma dieta saudável e equilibrada, mas o conhecimento trouxe também “mais stress em relação à comida”. “Quando tinha um exagero sentia-me pior porque sabia que estava a fazer mal ao corpo”, confessa o engenheiro informático. Quando atingiu o número pretendido na balança, as consultas terminaram, contudo a semente da obsessão já estava instalada e pronta a desabrochar.
Há um ano, a saúde mental de Pedro pregou-lhe uma partida. O stress no trabalho aumentou e o namoro de quatro anos começou a dar sinais de desgaste. Perante esta fase “mais instável mentalmente” e de algum “desequilíbrio”, caiu nos velhos hábitos de usar a comida como recompensa. “Comecei a comer mais, o meu peso subiu ligeiramente e isso deu ‘trigger’ à compensação através da purga”, conta. No início era uma vez por semana, mas rapidamente passou para duas e três vezes. Durante seis meses viveu com a bulimia em segredo, até ganhar coragem e marcar a primeira consulta de psicologia na Dismorphia. A abordagem consistiu em parar o sintoma, o vómito, e depois mergulhar nas causas por trás da perturbação alimentar. “As primeiras consultas foram importantes para perceber o que podia fazer para aliviar o mal-estar mental. Ao ficar com a cabeça mais leve, consegui controlar muito melhor todos os impulsos”, explica. Ao fim de dois meses a bulimia “estabilizou”.
Pedro saiu de casa dos pais há dez anos, para estudar, e nunca mais voltou. A dificuldade em relacionar-se com a família e o facto de nunca se ter sentido confortável em abordar a questão da sua homossexualidade afugentaram-no de casa. “Esta dificuldade em relacionar-me com eles e o afastamento que sentia era um dos tópicos que me pesava imenso e que estava a contribuir para o meu mal-estar”, assume. Por isso, escondeu da família a doença, mas reconhece que terá de enfrentar a “causa do problema” com eles, porque “o problema real está mais enraizado e começam nos traumas da infância”.