A banda teve altos e baixos, poderia ter acabado ao fim de meio ano (não aconteceu), poderia ter-se chamado Beijinhos & Parabéns (mas não seria a mesma coisa). O processo criativo mantém-se: músicas primeiro, letras depois. Tim conta como os poemas nascem (como flores), as palavras que escrevia em cadernos com linhas. E os fãs explicam porque se colam às grades com os pés levantados do chão.
É dia de ensaio. Na véspera, os quatro (Tim, Kalú, João Cabeleira e Gui) estiveram no regresso do programa “Isto é gozar com quem trabalha”, de Ricardo Araújo Pereira, numa conversa transmitida em direto, a partir do Seixal, e no palco com a música “À minha maneira”. A banda continua na estrada. “Pela diversão, pela mensagem, porque nos sentimos bem com o que fazemos”, declara Tim à Notícias Magazine. Um grupo de rock’n’roll à portuguesa, com certeza. “Um organismo vivo”, acrescenta. Momentos inesquecíveis? “São vários, são muitos, e são todos importantes”, responde.
No fim dos anos 1970, havia música a acontecer numa garagem dos Olivais. Zé Pedro e Zé Leonel compunham, criam o grupo Beijinhos & Parabéns, Tim e Kalú entram depois, dois ensaios e o nome fica Xutos & Pontapés, mais condizente com o som e o tom. Tim lembra-se bem. “Poderia ter acabado tudo ao fim de seis meses, fomos andando por aí fora sem ter uma ideia de ser isto ou aquilo.” Não terminaram, fizeram concertos, gravaram álbuns (o próximo está meio feito, revela Tim), construíram músicas inconfundíveis e marcantes, que se entranharam no cancioneiro nacional, no imaginário coletivo.
Primeiro, as músicas, depois as letras de Tim. “Sou uma pessoa um bocado impulsiva, dou muito valor aos sinais, às coisas e novidades que vou encontrando, uma faísca, uma cena.” É um processo rápido. “As canções são como as flores, aparecem, são fugazes.” Escrevia-as em cadernos, alguns que trouxe de Macau, outros de promoção de festas e festivais por onde a banda passava. Agora é mais telemóvel e computador. “É mais prático.”
Os Xutos celebram 45 anos no Queimódromo do Porto a 14 de setembro, dia em que Zé Pedro festejaria 68 anos. “É mais uma homenagem, ele ia gostar que fosse assim”, comenta Tim. O concerto será longo, 30 músicas ou mais, dois alinhamentos fundidos num, encerrará a tourné Olá Vida Malvada, terá uma surpresa ou outra, dois grupos a abrir: Meu General e o Conjunto!Evite. “Será um encontro entre os músicos e o público, o público e o público, e o público e os músicos.” Uma festa, portanto. Há packs de bilhetes para famílias e a CP faz descontos nas viagens de 13 a 15 de setembro.
Joca, como é conhecido, Fernando António de seu nome, comediante de Vila Nova de Gaia, lá estará na linha da frente. Esteve nos concertos dos 15, 20, 25, 30, 35 anos, não poderia faltar a este, já recusou trabalho para esse dia. É fã e tem um manual para ver Xutos. “Chegar cedo, ver o sound check, beber uns copos, jantar, e passar o concerto pendurado nas grades, os pés não pousam no chão.” Para si, é assim que tem de ser. “Um concerto dos Xutos é uma romaria.” Desfrutada até ao tutano.
O cenário do seu canal de YouTube é uma moldura com o bilhete do primeiro concerto que viu dos Xutos, em 1988, no cais de Gaia, a 250 escudos, e o seu alinhamento preferido da digressão Três Desejos em 2005. Tem um lenço de Tim, vinis e CD, falta-lhe o “90” lançado em França, livros sobre a banda. É mais colecionador de memórias do que de objetos e não se aproxima de quem admira. “Sou um bicho do mato, não gosto muito de falar com os meus ídolos.” Pelos Xutos, fez muita estrada, já andou 15 quilómetros a pé, dormiu numa caixa de multibanco à espera do primeiro autocarro da manhã.
Paula Bustorff é fã também e perdeu a conta aos comboios e autocarros que apanhou, às viagens que fez no seu carro, aos concertos que viu. Sempre junto às grades, como deve ser. Conheceu muita gente nessa admiração pela banda (inclusive o pai dos seus filhos), foi sócia do clube de fãs, tem a discografia, t-shirts, baquetas do Kalú. “Os Xutos fazem parte da minha vida”, garante.
Em 2000, no encontro de fãs, no Ritz Club, em Lisboa, tinha sido operada ao ouvido direito numa segunda-feira, teve alta na sexta. “No dia seguinte, sábado, estava a ouvir Xutos na fila da frente.” O pano com o X dos Xutos, prenda de casamento, esteve meses em cima da sua cama. Na lua de mel, ficou no mesmo hotel dos Xutos para assistir a dois concertos em Aveiro. “De 1999 a 2004, antes de engravidar, programava as minhas férias e os meus fins de semana consoante as tournées dos Xutos.” Depois engravidou e grávida de gémeos, de barriga de quase seis meses, assistiu ao espetáculo dos 25 anos dos Xutos, o único em que não colou às grades por razões óbvias. Os filhos Pedro e Laura, hoje com 20 anos, são também fãs, tratavam Zé Pedro por tio Zé com autorização dele. Paula Bustorff, técnica de farmácia na Fundação Champalimaud, acompanhou-o na doença.
X, braços cruzados, ao alto
Os GM, de Gritos Mudos, são uma banda de tributo aos Xutos que ganhou forma nos corredores da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Bernardo Moniz e Jorge Montinho faziam alguns concertos na associação de estudantes, nada de sério ainda. Em 2002, nasce a banda. Mais de 650 concertos desde então, uma média de 40 a 45 por ano. Com Bernardo Moniz na voz e baixo, João Casinhas na bateria, André Ferreira na guitarra, Sérgio Montinho também na guitarra, Carlos Delfim no saxofone, teclas, voz.
Ter uma banda assim é uma responsabilidade e um motivo de orgulho. “Sim, é, e é sobretudo aconchegante sermos reconhecidos pelos próprios”, realça Bernardo Moniz. Kalú já tocou com os GM. “Nota-se que somos muito fãs, curtimos à brava.” Um concerto dos GM atravessa vários períodos dos Xutos, sem falhar os maiores clássicos. “Tentamos ir ao milímetro, não como uma cópia, tocamos o que nos sabe bem”, adianta Bernardo Moniz, economista e músico.
Em 1997, Bernardo Moniz viu 25 concertos da tourné “Dados Viciados”. Começou a ouvir Xutos aos 16 anos nas festas de amigos em Salvaterra de Magos, aos 18, com carta de condução, começou a seguir a banda. Na fila da frente, sempre que possível. Tem todos os discos dos Xutos, alguns autografados, uma camisola assinada por todos, palhetas do Tim. “Os Xutos surgem numa altura muito complicada e turbulenta da nossa história e começam a dizer muita coisa, a mensagem é muito forte.” Há ainda a boa onda. “Olhamos para o palco e não vemos superestrelas. São comuns mortais, tal como nós. E há miúdos à frente que sabem a história toda.”
O X, o símbolo da banda, faz parte da história. Surge por acaso na gravação do videoclip dos Contentores. A jovem atriz Ana Padrão estava no meio do público e precisava de fazer um sinal ao homem da câmara para focar o plano. Levantou os braços em X com um lenço no pulso. O resto, é história.
Os Xutos são muita coisa, inspiraram sapatilhas, vinhos, mochilas, motas, são comendadores, Zé Pedro tem o nome num avião da TAP. Na última quarta-feira, entrou em circulação uma moeda de cinco euros em homenagem à banda. “É mais um motivo de satisfação e uma prova de reconhecimento”, refere Tim.
Paula Bustorff conhece todos os elementos. “São sobretudo amigos uns dos outros, um grupo de camaradas que se juntam por prazer, a música é só mais um elo de ligação.” O que explica o estatuto de banda de culto? “O gozo que têm em tocar juntos.” E não só. “As músicas que escrevem dizem qualquer coisa a todos, seja uma frase, um momento, seja a canção inteira. Não são só palha, têm conteúdo, têm alma, têm espírito. Têm muitas músicas de intervenção, mesmo que não pareça.” E tudo o resto. “A simplicidade e a dádiva deles aos fãs.”
As músicas ficam, a banda perdura. “São um escape para as confusões da vida, são uma razão para nos reunirmos, põem em palavras e músicas o que pensamos, a revolta que temos, a felicidade que sentimos, a tristeza que nos assola”, destaca Paula. Segui-los não custa. “É uma doideira agradável e saudável”, assegura.
Os Xutos já tocaram em todos os continentes, deixaram de o fazer. Tim explica. “Nunca tentámos a carreira internacional a sério, não estávamos para aí virados.” Se podiam, e tinham público cá dentro, porquê ir lá para fora? Era lógico.
Nenhum concerto é igual ao outro, diz Joca, que começou a ouvir Xutos aos 12 anos. Fã incondicional, por vezes, contra a corrente. “Quando deixou de ser moda e de ser fixe gostar dos Xutos, no início dos anos 1990, eu gostava ainda mais.” A admiração jamais esmoreceu. “Parece-me que eles são uma grande família, enquanto banda, e isso transborda do palco.” Uma coisa é unânime: atitude e carisma não lhes faltam. E eles sabem disso.