Paulo de Carvalho. “Vou continuar a fazer música, não necessariamente da mesma maneira”

De miúdo de recados numa companhia de seguros voou para a música aos 15 anos. Os Sheiks e o sucesso. O momento em que descobre que a voz é o seu verdadeiro instrumento. Ficou na história do 25 de Abril com uma canção de amor. No primeiro 1.º de Maio, não teve braços para tantos cravos que lhe ofereceram. Termina 2024 com dois concertos: na Casa da Música dia 28, no Centro Cultural de Belém a 29. Não é uma despedida. Em 2025, andará em digressão. E depois do adeus, Paulo?

Chega ao Hotel Vila Galé de Paço de Arcos antes da hora marcada. Antes da conversa, fotografias dentro e fora do hotel, com e sem o boné azul, no jardim com vista para o Tejo. Foi operado às cataratas e diz, com graça, que vê as moscas que voam na outra margem. Emociona-se com facilidade, a fama nunca o impressionou, não vive preso ao passado. A desonestidade, a má-língua e o desamor chateiam-no. As redes sociais também. São 62 anos de música, 77 de vida, 28 álbuns, mais de 300 canções escritas. “Tenho o que me baste. Estou bem, muito obrigado.” Continua na estrada e com novo disco a marinar na cabeça.

Ainda usa sapatos de pala.
Uso. E faz três anos que não uso meias.

Então?
Não gosto. Enquanto não morrer de frio…

Houve uma altura em que vestia por medida, fatos completos.
Até 74. Tinha a ver com os Sheiks, uma banda que formámos, que toda a gente diz que eram os Beatles portugueses, e eu detesto.

Não gosta da comparação?
Não, não gosto. Quando começámos ainda não tínhamos conhecimento de que os Beatles existiam. Essa coisa dos Beatles portugueses… Sempre fomos qualquer coisa lá de fora, nunca gostei disso. Vá lá que hoje os outros é que são o Cristiano Ronaldo da terra deles. Com os Sheiks, tínhamos fatinhos todos iguais. Era moda, usava-se.

Eram os “pintas” do rock?
Sim. Se quiserem ter uma ideia do que éramos na altura, se hoje forem à fama dos Xutos, dos GNR, tínhamos efetivamente essa fama, também nos roubavam cabelos. A única coisa que não faziam, porque não havia, era tirarem selfies connosco. Éramos mais do tempo dos autógrafos.

Os Sheiks, banda que formou em 1963, com Carlos Mendes, Fernando Chaby e Jorge Barreto, estão na história da música nacional

Não gostava de dançar, nem de álcool, nem de drogas. Como contornou os excessos associados ao rock?
Não desse rock. Não havia grandes excessos nessa altura. Apanhei uma bebedeira com 15 anos e enjoei tudo quanto era álcool, até aos 40 não toquei em álcool. Em compensação, fumava três maços de cigarros por dia. Dir-me-ão: então ao teu lado não aconteciam coisas? Aconteciam, só que estava tão interessado na música e no instrumento que tocava que era a bateria. O meu tempo era preenchido com isso, não tinha necessidade de absolutamente mais nada. Então o fulano da vida artística não bebia? Não, não bebia. Quem quiser acreditar, acredita, quem não quiser, bom dia.

Recuemos ao passado. Como é que os seus pais reagiram quando entrou na música?
O meu pai trabalhou em barcos a vida quase toda, era barman em barcos de passageiros e de carga, e a minha mãe era uma senhora dona de casa que me dava toda a liberdade do mundo com responsabilidade, que é também aquilo que faço com os cinco filhos que tenho. O meu último nome é Costa e escolhi como “nome artístico” Paulo, mas de Carvalho. Na minha casa, toda a gente me chamava Manel. Quando escolhi o nome de Paulo de Carvalho, lá para os meus 15 anos, passei a ser o Manel Paulo lá em casa. Segundo a minha mãe me disse, por alto, houve uma certa tristeza da parte do meu pai de não ter escolhido Costa em vez de Carvalho.

O seu pai passava muito tempo fora de casa. Essa ausência marcou-o?
Não creio que tenha marcado muito porque a minha mãe compensava tudo isso, a minha vida compensava tudo isso, a noção de responsabilidade que adquiri muito cedo, comecei a trabalhar com 14 anos.

Era o miúdo de recados numa companhia de seguros, paquete como se dizia.
Foi preciso, nessa altura, e estudava à noite. A noção de responsabilidade era grande, os tempos eram outros também.

Teve uma educação tradicional, religiosa?
Não. A minha mãe não era religiosa, o meu pai muito menos, não eram contra, até porque o resto da família era muito católica. Sempre houve, nas nossas casas, o respeito pela vontade dos outros. Nem nós chateávamos, nem eles nos aborreciam por não termos a mesma crença.

Nasceu numa família modesta em Lisboa, aos dois anos mudou-se para o bairro de Alvalade, onde agora tem um mural na fachada de um prédio. O pai era barman em barcos de passageiros e de cargas, passava longas temporadas sem vir a terra. A mãe era dona de casa. Desde pequeno, foi educado com princípios robustos: respeito, responsabilidade com liberdade – que agora também transmite aos cinco filhos. Música e futebol eram os sonhos da adolescência. Vingou a primeira. Em 1974, venceu o Festival RTP da Canção com “E depois do adeus”, letra de José Niza, música de José Calvário. Uma das canções que se tornou senha do 25 de Abril, sinal de arranque às Forças Armadas. Uma das muitas cantigas a que deu voz em concertos por todo o país

Que sonhos tinha nessa adolescência?
Música, música, música. Futebol, futebol, futebol.

Jogava à bola na rua, primeiro a brincar, depois a sério. Quando arrumou as chuteiras?
Só parei de jogar futebol, amadoristicamente, aos 45 anos, por volta disso, quando as pernas começaram a chamar-me a atenção para que já não era possível da mesma maneira e quando por mim já passavam rapazes mais novos a correr que parecia que iam de mota. Comecei as minhas tentativas no Sporting, mas depois, jogar, jogar, foi no Benfica e, mais tarde, terminei a minha importantíssima carreira (ri), federada como se diz, no Belenenses.

Era médio direito, certo? E marcava golos?
Na altura, jogava-se no esquema de 4x3x3, para quem interesse estas coisas do futebol. Jogava sobre o lado direito, o 3 do meio-campo, o que não me impedia, de vez em quando, de fazer um golito.

Ainda vai ao futebol?
Sou um espetador de sofá. Não tenho paciência para ir ao futebol, nem para ouvir a conversa de quem fala de futebol depois dos jogos. Há um programa de que gosto na RTP3, são três pessoas educadas que falam e ouvem o que os outros têm para dizer. Vejo muito futebol na televisão, normalmente sem som, porque aquilo que estão a dizer também sei fazer, sei dizer, sei ver. Muitos dos locutores, basicamente, dizem os nomes dos jogadores como se estivéssemos a ouvir o relato na rádio, não fazem comentários como deve ser. Aliás, a sociedade como está, e que também se reflete no futebol, não está grande coisa.

Ainda bebé, com a mãe, que não era católica

A sociedade dos discursos polarizados, extremistas? É isso?
Também. Mas fundamentalmente porque a sociedade se está a tornar numa coisa completamente parva, oca. Basta olhar para as redes sociais. A raça humana tem uma coisa sensacional: cria coisas maravilhosas e depois estraga-as logo a seguir. A televisão permitiu-me, às quatro da manhã, ver um homem a pôr um pé na Lua em direto. E depois? Para que é que serve a televisão, na maioria dos casos, senão para aparvalhamento das pessoas? É o que se está a passar com as redes sociais. Qualquer um escreve, qualquer um diz disparates.

Não usa as redes sociais?
Uso através de pessoas com quem trabalho e trabalham comigo para dar conhecimento do que estou a fazer profissionalmente.

Um instrumento de trabalho?
É um instrumento de trabalho. Não dou opiniões, deixei de dar quando comecei a ser insultado. As coisas mais parvas do mundo. Se não fossem tão estúpidas, era coisa para me aleijar, mas não aleijam porque são tão estúpidas, tão estúpidas, que não aleijam.

Voltemos à música. A tropa interrompe-lhe a vida nos Sheiks que depois retoma. Tinha mesmo de ser?
O serviço militar interrompia a vida a muitos de nós, a quase todos nós. Tive a sorte de não ter ido lá para fora, ainda hoje estou para saber porquê, mas não foi por nenhuma cunha ou por ser o senhor fulano de tal que, na altura, não era, nem os meus pais eram importantes. Portanto, foi um acaso. Foi tudo tão natural que ainda hoje estou para perceber como é que já passaram, de música, 62 anos. As coisas foram acontecendo. Era para fazer música com este e com aquele, o que é que se faz, que disco se faz a seguir, em que direção se vai. Fui muito influenciado por vários estilos de música, daí até ter criado, provavelmente, alguma confusão no público porque mudava muitas vezes. Mudava por gosto, absolutamente por gosto, desde o rock ao fado. Estou convencido, pelas informações que me deram, de que o disco que fiz que mais se vendeu foi um de fados, quando não sou fadista, que se chama “Desculpem qualquer coisinha”, onde está a canção “Os meninos do Huambo”, a que tocou mais na rádio.

A rádio era uma grande montra da música que se fazia?
Era o que não é hoje. Hoje há uma série de defeitos provocados por nós, raça humana. Aquilo que podia servir para divulgar a música que se faz em Portugal e que, neste momento, em meu entender, é muito boa, há gente nova a cantar maravilhosamente, mas depois são quase sempre os mesmos por razões que a razão, no meu caso, desconhece. Há muita boa música que não se ouve e sei porque vou com alguma frequência a concertos de pessoal mais novo, não necessariamente nos Meo Arena desta vida porque para ficar em pé já dei, já não tenho idade para isso. Ainda há um ano ou dois, sentei-me a ver um grande concerto de um grande músico chamado Manel Cruz. Não disse nada a ninguém, ninguém me conheceu, estive lá quietinho, e usufruí não só do brilhantismo do que ele faz, como dos companheiros que estavam a tocar com ele.

Há aquele momento em que descobre que a voz é o seu verdadeiro instrumento?
Nos Sheiks, eu nem cantava, o vocalista principal era o Carlos Mendes. O momento é 1970, Festival RTP da Canção, convite do Pedro Osório, para cantar “Corre, Nina”. E aí acharam-me alguma gracinha e disseram: ‘Este fulano é capaz de ser giro’.

E o fulano o que é que disse?
O fulano não disse nada. Gosto muito daquelas pessoas que dizem que nunca se arrependem de nada do que fizeram. Eu arrependo-me de várias coisas e uma é que devia ter aprendido solfejo, um instrumento como deve ser que me permitisse harmonicamente construir algumas das musiquetas que fiz. Deveria ter desenvolvido mais a aprendizagem musical da minha profissão. Mas foi tudo tão fácil, tudo ao mesmo tempo, esta coisa de cantar e cantar bem, mas não acredito naquele epíteto de ‘a voz’ – eh pá, não, há uns quantos em Portugal que cantam muito bem. Se me disserem que estou entre os 10 que cantam bem, digo que sim, mas daí a ser isto, aquilo, aqueloutro, o melhor, isso não. Quando me perguntam e a sua profissão qual é? Sou músico. E o que toca? Toco voz porque não sei tocar como deve ser mais nada.

Com “E depois do adeus” ganha o Festival da Canção em 1974. Pouco depois, essa canção de amor é uma das senhas do 25 de Abril. Percebeu a razão dessa escolha?
Ouvi anos depois, em Santarém, numa homenagem feita ao autor da letra, José Niza, e ao Salgueiro Maia. E ali estava eu, o fulano que cantou aquela cantiga. Ouvi a história contada pelo Otelo. O Otelo foi falar com o João Paulo Diniz para que ele pusesse na rádio uma música que servia de sinal de arranque às forças armadas. Ele teve receio da música que o Otelo queria, e que os militares queriam, o “Venham mais cinco” do Zeca Afonso, e propôs outra música. E, então, qual? A que tinha representado a RTP no Festival da Eurovisão. Ok, faz sentido, o fulano que fez a música e o fulano que canta são de uma nova geração de pessoal que anda aí a cantar e o José Niza foi um dos fundadores do Partido Socialista. E eu fiquei na história por acaso. Dá-me muito prazer? Dá, sim senhor, mas foi por acaso. “E depois do adeus” é uma cantiga de amor que podemos, à boa maneira da revista à portuguesa, ler nas entrelinhas e dar outro sentido ao texto.

Com 62 anos de vida musical, tem vários prémios e distinções: nos 60 anos de carreira, foi agraciado com a Comenda da Ordem da Liberdade pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa

Em algum momento, e de alguma forma, sentiu o que era viver em ditadura?
Não necessariamente, não na pele. Não deixei de fazer o que queria fazer. O vizinho que morava por baixo de mim era da PIDE e, muitas vezes, a mulher dele ia lá cima, quando andava a jogar à bola em casa, ou a fazer qualquer coisa, meter medo à minha mãe: ‘ó miúdo está quieto porque me dói a cabeça ou porque o meu marido é da PIDE’. Não percebia bem o que isso queria dizer, nem tinha consciência do que era essa coisa do combatente anti fascista antes do 25 de Abril.

Diz, muitas vezes, que a verdadeira revolução no 25 de Abril não se fez, referindo-se à revolução cultural, de mentalidades. O que é preciso para a fazer?
A nossa vontade. Cada vez mais, estamos metidos em coisas que não interessam a ninguém. Portanto, é preciso que nós queiramos, é preciso que entendamos que é importante saber outras coisas que não só o valor do dinheiro, por exemplo.

A liberdade tornou-se uma palavra muito usada e esvaziada de sentido?
É muito usada sem sentido pela maioria das pessoas. Quero acreditar que ainda há gente que quando emprega a palavra liberdade sabe porquê.

No 25 de abril, estava no Vavá, café que frequentava, só depois é que percebeu o que tinha acontecido.
Estava à porta do café sem perceber nada do que se estava a passar, só depois é que soube. E depois houve aquele maravilhoso primeiro 1.º de Maio, em que já não tinha braços para tantos cravos que me davam, provavelmente fizeram a mesma coisa ao Zeca, aliás com mais justiça.

Defende que a obra de Zeca Afonso deveria ser estudada nas escolas. De que forma?
Sobretudo os textos. A música é uma coisa complicada de se entender porque nem todos têm capacidade para desenvolverem a música que ouvem. Agora o texto é fácil, todos nós vamos à escola aprender a ler. Pelo menos, aprender os textos do Zeca e quem diz do Zeca diz do Sérgio Godinho, Zé Mário Branco, Fausto, Ary dos Santos, Fernando Tordo, Carlos Tê, Jorge Palma, e tantos – não gosto de falar em nomes que esqueço-me.

Também escreve, é compositor.
Faço umas “letrosias”.

Compõe poemas para serem musicados.
Não me atrevo a dizer isso e não por falsa modéstia que não sou um falso modesto. Fiz letras para cantigas minhas por absoluta necessidade. Das cantigas que fiz, e que são mais conhecidas, fiz muito trabalho com o Zé Carlos Ary dos Santos sobretudo para o Carlos do Carmo, “Lisboa, menina e moça”, “Os putos”, “O homem das castanhas”, “O cacilheiro”.

Oeiras 03/12/2024 – Entrevista de vida a Paulo de Carvalho no Hotel Vila Galé em Paço de Arcos.
(Rita Chantre)

Os compositores têm sido uma mera nota de rodapé das músicas?
Não quero pôr a culpa nesta nova forma de fazer rádio, em que às vezes nem o nome das cantigas ouvimos, muito menos o nome dos compositores, mas já não era mau que os cantores falassem dos compositores que cantam nos espetáculos que fazem.

O que é que absorve da vida que transporta para as suas músicas?
Tudo. Levo os filhos à escola, vou ao supermercado, vivo com as pessoas. Se querem falar comigo, na rua, paro a falar com as pessoas. Falo de tudo, só não falo do que não sei. Às vezes, não sei pôr numa cantiga coisas que me acontecem. Não sou diferente da pessoa que está em cima do palco. Sou a mesma pessoa.

Este ano, lançou o álbum “2020, capa branca só com o ano, ano da pandemia.
Foi um disco feito através do iPhone com o meu queridíssimo amigo Fernando Abrantes. Estivemos um ano nisto, fui fazendo as letras, as músicas, ele foi desenvolvendo. Quando foi possível sair de casa, fui ao estúdio que ele tem, cantei e depois mandámos para uma série de companheiros de música para cantarem comigo. Basicamente foi isso. No fundo, é trabalhar. Quando perder este entusiasmo de fazer coisas novas, acho que é aí que a gente chega ao fim. Adoro ir para cima do palco, adoro cantar.

Cantigas novas?
Fundamentalmente, coisas novas. E não faço mais porque, muitas vezes, o que me rodeia, tudo isto a que chamam indústria musical, não me deixa. Não estou a falar só de mim, estou a falar de uma série de gente, companheiros de profissão, que gostava de fazer e não consegue porque a indústria não deixa.

E porque não deixa?
Em meu entender, a indústria musical em Portugal está demasiado viciada.

Numa das músicas desse disco, canta: “Os rapazes do meu tempo são de um tempo que não há, se uns deram tempo ao tempo, outros ficaram por lá”. Lá, por onde, perdidos no tempo?
Perdidos no tempo deles, naquele tempo em que acreditam e que gostam, nos anos 60 do rock. Eu também gosto.

É saudosista?
Não sou nada. Como disse várias vezes, parafraseando o poeta, eu tenho é saudades do futuro. Já ando a pensar no que vou fazer a seguir.

O alinhamento de um espetáculo

Tem um disco a cozinhar na cabeça?
Completamente. Trabalho com gente, os músicos com quem funciono, dos 40 anos para baixo. E estou com 77. Parece que não, mas isso alimenta-me muito. E há um enorme respeito. Não é senhor Paulo porque é mais velho, é o Paulo. Eles sabem muito mais do que eu do ofício propriamente dito, leem música, tocam bem instrumentos, conseguem executar ideias que consigo passar. Para mim, é muito importante e dá-me vida.

Dois concertos este mês com o curioso nome “E depois do adeus?” com um ponto de interrogação.
“E depois do adeus?”, o que é que este fulano irá fazer?

O que é o fulano irá fazer?
Continuar a fazer música, mas não necessariamente da mesma maneira. É impossível não ter de cantar a “Nini dos meus 15 anos”, “E depois do adeus”, “Os meninos do Huambo”. Há muito tempo a esta parte que não faço isso da mesma maneira, podemos alterar a nossa forma de cantar, até é bom que o façamos. Os músicos com quem vamos tocando obrigam-nos a cantar de outra maneira porque tocam de outra maneira. E, depois, cantigas novas, cantigas que chamam a atenção das pessoas se quiserem estar atentas para os problemas que nos rodeiam. É para isso que também servimos, não servimos só para servir o nosso ego, servimos para servir as pessoas.

Ser músico, figura pública, é também ter essa responsabilidade de uma certa postura social?
Todos nós devíamos ter esse cuidado, muito mais os que são, como eu, desculpem o termo, “figuras públicas”. Nós temos obrigações, devemo-nos comportar como deve ser, devemos dar exemplos.

Nos 50 anos do 25 de Abril, é importante terminar 2024 com os dois concertos?
Não teve nada a ver com isso. Consegui convencer a Sons em Trânsito, produtora com quem funciono, que seria muito engraçado uma coisa que há anos gostava e que era fazer um ou dois espetáculos como deve ser entre o dia 25 e 31 de dezembro, aqueles dias em que as famílias estão reunidas e, muitas vezes, não sabem o que fazer. Um concerto no Porto, uma terra que me é muito querida – devo ter alguma costela lá de cima, o meu avô e o meu pai eram de Santo Ildefonso, nasceram à beira da Batalha. Na Casa da Música e no CCB nos dias 28 e 29 de dezembro. Vamos lá ver se as pessoas têm vontade de sair de casa.

Em 2025, vai andar em digressão?
Comecei a fazer um espetáculo intimista, que me dá um prazer enorme, em sítios mais pequenos, com o meu queridíssimo amigo Victor Zamora, pianista cubano que vive cá há muito tempo e com quem toco há imenso tempo, que se chama “Contar cantigas”. Todas as canções têm uma história. Sem ser chato, não me ponho a fazer discursos, tento contar a história de cada música que a seguir cantamos. É uma ideia como outra qualquer. Temos de ter ideias para “vender o nosso produto”.

É possível, de alguma forma, contar a história da sua vida a partir dos seus álbuns e músicas?
Acredito que sim, nunca pensei nisso dessa maneira. Cronologicamente, não sei, é difícil, mas, se calhar, seria possível.

Com o filho Paulo Nuno às cavalitas. A família (tem cinco filhos) sempre foi a base, o suporte

E a história do país?
Uma das cantigas do meu repertório de que mais gosto chama-se “Uma cantiga de amor”. Foi feita em 1977 e é uma cantiga imensamente política. No entanto, é uma cantiga de amor até porque o amor pode ser cantado de várias formas. Fala da mondadeira, do pescador, do trabalhar da fábrica, de várias pessoas, e acaba dizendo que um dia destes ainda havemos de fazer um Abril melhor do que este.

Ainda há muita estrada para andar?
Enquanto cá andar, haverá. Continuo a gostar muito do que faço. Mesmo com uma dorzita, ou no joelho, ou na anca, vou andando, vou fazendo, com a ajuda de muita gente e sobretudo com a ajuda da parte mais importante de tudo isto, que vive na retaguarda, que é a família.

Não canta em casa, pois não?
Nunca cantei em casa. Não sei porquê, não me dá jeito ou tenho vergonha, sempre tive, mesmo para ir para cima do palco, agora não, agora estou mais à vontade.

Antigamente sentia aquele nervoso?
De que maneira. A minha sorte é que as calças eram à boca de sino porque os joelhitos batiam um no outro de nervoso.

A despedida dos palcos não é para já, portanto?
Não necessariamente, o que não quer dizer que não possa acontecer um dia destes. É uma coisa que depende só de mim. Estou bastante lúcido, se pensar que não estou bem, nesse caso, não canto, paro. No dia em que disser que não canto mais, não canto mais.

Sorte ou engenho?
As duas coisas.

Equilibradas?
Equilibradas ou desequilibradas até. Se calhar, mais sorte do que engenho, mas houve trabalho e houve engenho.

Acredita em Deus?
Não. Acredito no Homem.