Jorge Manuel Lopes

Vida e morte, paixão e apaziguamento


Dawn Richard regressou às notícias por ótimas e péssimas razões. A péssima razão: a cantora, compositora e atriz nativa de Nova Orleães interpôs ação judicial contra Sean “Diddy” Combs, alegando que este a agrediu sexualmente, privou-a de comida e sono e se recusou a pagar-lhe adequadamente, no período, entre 2004 e 2010, em que Richard integrou as Danity Kane e o projeto Diddy-Dirty Money, ambos sob a alçada de Combs. A ótima razão chama-se “Quiet in a world full of noise” (Merge/Popstock), o segundo álbum em parceria com o multi-instrumentista, compositor e produtor residente em Nova Iorque Spencer Zahn – trabalho encantatório, cinemático, de canções intimistas, num estado de suspensão entre a música clássica, a eletrónica etérea e o jazz vaporoso.

Tanto “Quiet…” como o registo anterior com Zahn, “Pigments”, de há dois anos, divergem dramaticamente da obra prévia de Dawn Richard a solo. O que não é fácil: a sua discografia entre 2011 (mixtape “The prelude to a tell tale heart”) e 2021 (álbum “Second line”) forma uma década de r&b levado por caminhos audaciosos, esticando a corda à canção popular sem a quebrar. É uma das mais brilhantes e camaleónicas sequências de discos publicadas neste século e mereciam, pelo menos, uma fração da atenção dirigida a Beyoncé – a comparação não é aleatória.

Tudo nestas 12 canções é um relato pessoal, de vida e morte, paixão e apaziguamento. O piano tocado por Zahn, aponta direto ao coração, noturno e moroso, especialmente no tema-título e em “Life in numbers”, com um fio orquestral a trazer pungência. Também se vive exclusivamente de uma nébula de interferências digitais, caso de “Stay”, enquanto “Moments for stillness” carrega um dramatismo carmim e evoca Angelo Badalamenti, com contributo da Budapest Film Orchestra. No final, “Ocean past” e “Try” parecem encontrar um ponto de fuga, canções outonais que sabem a David Sylvian, com desenhos de trompete, fliscorne e trompa. Por toda a parte, Dawn Richard mantém a chama da soul, do r&b, do jazz clássico, com um domínio, contenção e plasticidade de assombrar. E assombra.