Margarida Rebelo Pinto

Viagem ao pretérito perfeito


A capacidade que temos em olhar para o passado diz muito sobre nós.

Em 1980 tinha 15 anos e vi Portugal mudar. Às vezes, tenho a sensação que crescemos ao mesmo tempo, o país e a minha geração. Revisitei-a graças ao último livro de Pedro Boucherie Mendes, “A década prodigiosa”, com o subtítulo “Crescer em Portugal nos anos 80”, à venda desde o início desta semana. Trata-se de um retrato dos icónicos anos da pop nacional, dos Kispos (o meu era amarelo), da novela “Vila Faia”, do Spectrum, do Tony Silva, de “O Passeio dos Alegres”, do Frágil, do Rui Veloso, das Doce, da Dona Branca, da “Abelha Maia”, do “Marco” e do pequeno guerreiro “Vicky”. A televisão só começava às seis da tarde, exceto para os alunos do Ciclo Preparatório TV, e encerrava a emissão com o entoar de “A Portuguesa”, enquanto a bandeira nacional era hasteada.

Já no final da década, com Cavaco Silva no poder, começou a euforia dos dinheiros europeus, os Armazéns do Chiado arderam, Herman José foi censurado em “Amor de Perdição”, toda a gente lia Miguel Esteves Cardoso e nasceu “O Independente”, que viria a mudar o jornalismo para sempre. Os Xutos & Pontapés davam um pontapé na música, com letras fáceis e melodias simples, o Zé Pedro era um sex symbol e as viagens de finalistas a Torremolinos provocavam grande sururu pelos estragos causados. Eu tinha uma agenda Filofax que ainda hoje guardo, gostava de ir às matinés no Rock Rendez-Vous e à noite ao Ad Lib e ao Whispers. Em agosto de 1988 o nudismo foi legalizado e em setembro de 1989 rebentou o escândalo das cassetes do arquiteto Taveira, que inspirou uma série a estrear em breve. Bebíamos leite com Mokambo, Nesquik ou Milo, comíamos sombrinhas de chocolate Regina, mastigávamos pastilhas Gorila e devorávamos Sugus. Brincávamos na rua, íamos para a Costa da Caparica à boleia e não existiam telemóveis.

O livro guia-nos pelo passado como um parente querido nos levava pela mão à Feira Popular quando éramos crianças, trazendo à memória lugares, modismos linguísticos, músicas, tendências, comportamentos. São quase 600 páginas de factos contados e descritos com objetividade e ternura. A década prodigiosa foi o mais importante agente de mudança de Portugal, aquela que permitiu o grande salto para a modernidade possível. Segundo o autor, “os anos 80 foram uma viagem, uma quase peregrinação, com peripécias e momentos, pintada a otimismo que se alimentava porque sabíamos que chegaríamos a um local feliz”.

Não me lembro de ter lido um volume tão grande em tão pouco tempo. Quando Italo Calvino escreveu as “Seis propostas para o próximo milénio”, no final da década de 90, a leveza, a rapidez, e exatidão, a visibilidade e a multiplicidade, acertou no modo como atualmente contamos a nossa história. Calvino morreu antes de escrever a última proposta, a consistência. Talvez seja a qualidade mais notável desta obra, entre as anteriormente enunciadas. Felizes são os povos que conseguem ver-se ao espelho, que sorte temos em podermos revisitar-nos numa prosa limpa, séria e profunda, sem um laivo de pretensiosismo.