Tozé Cid
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Agora que pus a mão no vinil “Tozé Cid – 1969 a 2023”, que antologia um pouco do melhor de Tozé Brito e José Cid, numa revisitação de charme e maturidade. Algumas canções são banda sonora do Portugal contemporâneo, sujeitas ao tempo da censura e libertas pela democracia e pela popularidade impressionante destes dois grandes senhores. Não posso deixar de ouvir este disco sem ver a vida inteira pelos olhos e pensar em como por mil vezes estas canções e estes poemas me intrigaram, me explicaram ou me inspiraram. E não há como ouvir este disco, que é todo feito para ser novo, sem ter a impressão de assistir à História contada por quem a fez.
O modo como Brito e Cid arranjaram estas canções parece levá-las ao essencial, limpas de tiques de época. Claro que é impossível escutar “Domingo em Bidonville” sem que isso signifique escutar algo a que cada um de nós já deu significado único. Quero dizer, não há como desmontar na nossa cabeça a força dessa canção, o quanto se inscreve na nossa memória e afecto, pelo que não há como impedi-la de medir o tempo e medir inclusive o tempo que vem, o que falta, por ser uma canção incapaz de morrer.
Muito do que vai neste disco agora repensado é património monumental da nossa cultura e o melhor que pode reconhecer-se-lhe é o respeito com que voltaram a abordar estas canções. O longo percurso de Brito e Cid é um sem-fim de pedra partida, muito trabalho, muita maravilha, mas o mais brilhante agora é a inteligência com que chegam a este resultado. Sempre me impressiona como os verdadeiramente grandes sabem facetar o diamante que criaram. Algo que se levanta sobre todas as épocas e não depende de alaridos que passam. Muito ao contrário, dizem respeito ao que fica.
Com uma ilustração de capa magnífica do João Maio Pinto, este “Tozé Cid” não é outra vez, é agora o que importa. É esse monumento de que falava em jeito limpo e recebendo generosamente seu público. Parece um certo palácio de som, calmo e adulto, culto e equilibrado, acolhedor e sempre com algum detalhe que apenas agora pudemos descobrir.
“Todo o mundo e ninguém” segue sendo a melodia perfeita que faz da melancolia uma coisa cintilante. Lembro-me de alguém dizer que o Quarteto 1111 era responsável pela mais bela melancolia. Concordo. Tudo me soa a um modo de partir sabendo que não se leva senão a capacidade de lembrar. Lembrar torna-se, afinal, o único jeito de haver presente.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)