O projeto internacional “InCASA” quer que qualquer peregrino com deficiência ou alguma incapacidade possa fazer os trilhos que culminam em Santiago de Compostela. Portugal está envolvido e há uma app já a ser desenvolvida. É o sonho de uma jornada transformadora a ganhar forma.
Ana Raya já se aventurou mais do que uma vez, fez-se aos percursos que se enchem de peregrinos com a mochila carregada de medos e um único objetivo: o de viver a experiência de fazer o Caminho de Santiago. Afinal, desde muito nova que a espanhola sonhava com isso. Era adolescente quando, numa viagem em família a Santiago de Compostela, se apaixonou pela ideia do Caminho, dos trilhos de peregrinação que percorrem vários pontos da Europa e afluem em Santiago de Compostela. “O fascínio foi crescendo, fui vendo vídeos, comprando livros, tenho uns seis ou sete livros sobre o Caminho de Santiago, revistas também, souvenirs. Sou uma freak do Caminho”, conta a rir. Mas o processo de se fazer à estrada levou tempo. Ana mora em Granada, Espanha, tem os cabelos curtos e grisalhos e, aos 47 anos, já se reinventou uma série de vezes à conta de uma doença que lhe foi roubando mobilidade. Desde os nove que vive com uma incapacidade física, degenerativa e crónica, provocada por uma artrite idiopática juvenil, que lhe afeta todas as articulações do corpo, “do pescoço aos pés”. Já passou por mais de uma dezena de cirurgias, caminha pouco, para distâncias longas usa cadeira de rodas.
“Em miúda era impensável que uma pessoa numa cadeira de rodas fizesse o Caminho.
Mas, com o tempo, fui percebendo que havia pessoas com mobilidade reduzida que faziam certos troços. Passei de pensar que era impossível a pensar que havia uma possibilidade.” Começou a pesquisar até que investiu numa mota onde gastou um “dinheirão”, à volta de cinco mil euros, e em 2018 arriscou. Juntou-se a uma associação, foi com um grupo de pessoas com incapacidade, com voluntários e com a mãe. De Melide a Santiago de Compostela, cerca de 80 a 100 quilómetros, um desafio gigante. “Em subidas a mota patinava, tinham de me empurrar, a topografia do terreno é complicada, havia pedras enormes onde ficava empancada, a balançar, tinham de me pegar a peso. Estamos a falar de Natureza, de rios, de lama”, relata. Aguentou a dor crónica de tantas horas sentada a conduzir, chegou ao destino e já neste verão voltou a repetir a façanha, desta vez foi de Pamplona a Logroño. Tem imagens das duas viagens, partilhou vídeos das jornadas no YouTube e no Instagram, até porque hoje é criadora de conteúdos sobre incapacidade e acessibilidade universal, formou-se nessa área, ainda dá formação e faz consultoria a várias entidades. Quer fazer mais vezes o Caminho, isso é certo. “É óbvio que as maiores barreiras do percurso para mim são físicas. Só que nem sempre o problema é o Caminho em si. É tudo o que o rodeia, os albergues, as casas de banho, os restaurantes, que não estão adaptados a pessoas com incapacidades.”
E é precisamente partindo deste ponto que nasce o projeto internacional “InCASA – Inclusive Camino de Santiago”, “para tentar contornar estas barreiras e tornar o Caminho mais inclusivo, uma jornada acessível para todos”. Quem o diz é Susana Rodrigues, da Atlântica – Instituto Universitário, em Oeiras, uma das entidades envolvidas no projeto, que junta parceiros como a Fundación Docete Omnes, de Espanha, uma associação romena, um parceiro esloveno ou uma organização polaca. “Sendo um percurso histórico, muitas vezes protegido, não podemos adaptar diretamente o Caminho, não podemos ir lá simplesmente alterar o terreno. Vamos, sim, sensibilizar entidades responsáveis com sugestões de alterações simples”, e também serviços que gravitam em torno do Caminho. Mas o objetivo principal é mesmo criar uma app, especificamente concebida para pessoas com deficiência, que reúna toda a informação útil e atualizada, sobre os albergues, quais são os mais inclusivos, onde estão localizadas casas de banho adaptadas, que serviços de apoio existem em cada ponto.
O trabalho já começou, com recolha de dados nos diferentes países, foram ouvidas pessoas com deficiência ou algum tipo de incapacidade, Ana Raya foi uma delas. “O que foi mais referido foi o medo. A ideia de irem de cadeira de rodas, furarem um pneu e não saberem onde se dirigir. Ou quererem ter noção de qual o tempo estimado para uma pessoa com incapacidade fazer cada troço”, exemplifica Susana. Os recentes relatos de assédio no Caminho, com denúncias de várias peregrinas em percursos de Portugal, França e Espanha, são uma preocupação a somar a tudo isto. “Estamos a falar de pessoas já de si numa situação vulnerável, adicionar esta questão é mais uma camada de medo.” A app também poderá ajudar nisso, terá uma funcionalidade para pedir ajuda. “Acontecendo alguma coisa, o participante pode comunicar na app, que permite ligar a uma autoridade ou contactar com outros participantes, que podem dar dicas, criando uma comunidade de pessoas que passam pelas mesmas dificuldades. E também está disponível para peregrinos sem limitações.” A ideia é que a aplicação, que pode ser usada offline, seja o mais completa possível, com informação sobre o tipo de terreno em cada percurso, se é terra, areia, alcatrão, se há pedras, lama, e com sugestões de rotas alternativas de acordo com os diferentes tipos de incapacidade.
O projeto conta com parceiros como a DisCamino, associação de Vigo, que acumula experiência nesta área. Começou em 2009 a ajudar pessoas com qualquer tipo de limitação a percorrer o Caminho de Santiago. A história remonta a agosto desse ano. “Fui professor de Desporto durante 30 anos e acompanhei uma criança surda e cega, o Gerardo, que tinha o sonho de andar de bicicleta e de fazer o Caminho de Santiago”, lembra Javier Pitillas, responsável da DisCamino. Às tantas, Javier quis ajudá-lo, foi então que encontraram um triciclo tandem, “como ele não tem equilíbrio e é cego, tinha de ter um copiloto, daí ser tandem”. Por ser tão caro, uma alma caridosa decidiu doar-lhes. Foi assim que se lançaram ao Caminho, Javier a conduzir o triciclo com Gerardo, mais três amigos a acompanhar. Ao todo, percorreram 800 quilómetros. “Quando acabámos, na Praça do Obradoiro, o Gerardo pediu-nos para ajudarmos mais pessoas como ele, para que pudessem desfrutar do que ele tinha desfrutado.” Nascia assim a DisCamino, que conta com patrocinadores para sobreviver e que ajuda pessoas a cumprirem o sonho sem pedir nada em troca. Já levam 129 caminhos feitos, várias rotas, mais de 600 pessoas com incapacidade chegaram a Santiago com a ajuda da associação.
“Desde pessoas com paralisia cerebral, com esclerose, invisuais, surdos, autistas, todo o tipo de incapacidade física, intelectual ou sensorial”, refere Javier. A DisCamino tem bicicletas, triciclos e cadeiras de rodas adaptadas, todo o equipamento necessário. São mais de 80 voluntários, com formação desportiva e terapêutica, a acompanhar os peregrinos. Javier conhece, por isso, os desafios do Caminho como a palma da mão, “os albergues, os hotéis, que não estão preparados, as próprias cidades”. “No Caminho em si, os nossos equipamentos já permitem fazê-lo, mas a acessibilidade não é só física, não se trata só de não poder caminhar, a sinalização tem de estar pensada para toda a gente, há pessoas que não veem, que não ouvem.” Javier vê esperança no projeto “InCASA”, “que pode ser muito útil”. “Por exemplo, sabemos que a cor amarela sinaliza o caminho tradicional, mas falta sinalizar também os caminhos alternativos, para que pessoas em cadeira de rodas saibam por onde têm de ir.” Há uma certeza, a de que é possível, “até já se conseguiu fazer o caminho numa cama com rodas”. E não há palavras que caibam nestas páginas para descrever o momento da chegada a Santiago que Javier já tantas vezes viveu. “É especial para todos, mas é particularmente especial para quem teve uma vida sem qualquer limitação e de repente sofreu um acidente e achou que a vida tinha acabado. Quando percebem que são capazes, a emoção é avassaladora.”
Vamos a números. O Caminho de Santiago é cada vez mais procurado, em 2022 bateram-se recordes, mais de 438 mil peregrinos. Mas desses, menos de 5% dos que completaram o Caminho relataram ter algum tipo de deficiência. A versão inicial da app do projeto “InCASA” será testada por participantes com incapacidade já em setembro de 2025, num percurso português, em princípio no Caminho Português da Costa, que está em alta na procura. “O nosso desejo é que a app permita fazer o Caminho da forma mais autónoma possível. Claro que a maioria destas pessoas terá de levar acompanhantes, familiares, amigos, mas o objetivo é não terem de recorrer a entidades externas”, assinala Susana. A versão final, que só vai incluir o percurso português para já (mais para a frente o objetivo é englobar todas as rotas), ficará disponível para o público em geral em 2026. E ainda será lançada uma plataforma de formação online para quem vai acompanhar um peregrino com alguma deficiência.
Talvez Nathan Henrique Martins possa vir a realizar o sonho recente. Participou nas reuniões do projeto para recolha de dados em Portugal, partilhou receios. Tem 30 anos e aos 25 viu a vida virar do avesso, quando sofreu um traumatismo cranioencefálico grave num acidente de mota, que lhe tirou mobilidade e o obriga a usar cadeira de rodas para longas distâncias. Perdeu amigos, namorada, deixou de poder trabalhar, de conduzir e, depois da violência do isolamento, encontrou esperança no surf adaptado com a Associação Salvador. Nathan nasceu no Brasil, mas mora em Portugal desde os 20 anos, tem dupla nacionalidade, nunca tinha ouvido falar do Caminho de Santiago até há pouco tempo. “O que mais me fascina é que não é algo totalmente religioso, é um caminho de liberdade, que estão a tentar tornar acessível para todos poderem fazer. E isso é incrível.”
Agora, está decidido a fazer o Caminho. “Com este projeto, a vontade tornou-se muito forte.” Talvez vá com amigos do surf, a intenção é fazê-lo de cadeira de rodas. “Com a app já vou ter todas as informações dos obstáculos que vou encontrar, do tempo que poderei levar, dos lugares onde posso dormir.” E tem uma certeza. “O que mais senti depois do acidente foi a incapacidade e levei tempo a perceber que a vida mudou mas não acabou. A vida continua.”