O Teatro de Balugas constrói peças inspiradas nas suas gentes. O Grupo de Teatro de Avintes atua em associações, escolas, lares, bairros. O Teatro Contra-Senso reúne-se na cave de um prédio em Marvila. Homens e mulheres, jovens e reformados, dedicados à causa. As palmas sabem bem. E os corações apertam com os poucos apoios e o público que minga.
É teatro feito na aldeia, uma história de persistência, uma prova de resistência. Em 2007, em Balugães, freguesia de Barcelos com menos de 800 habitantes, nascia o Teatro de Balugas por jovens da terra com vontade de lutar contra o desaparecimento da identidade rural. “Acreditamos que o teatro tem a capacidade de mudar uma rua, uma comunidade, um território, as pessoas”, defende Cândido Sobreiro, fundador e diretor artístico da companhia. Dezassete anos depois, 22 criações, atuações em Portugal e no estrangeiro, prémios nacionais e internacionais. Da aldeia para o Mundo. Amador, lembra Cândido Sobreiro, vem do latim “amator”, que significa aquele que ama.
Textos, cenários, figurinos, músicas. Tudo feito de raiz. “Dá muito trabalho, pôr as roupas a lavar, afinar uma peça que se estragou.” Carregar e descarregar material, combinar boleias, organizar ensaios. “São pessoas que têm o seu emprego e que nos tempos livres se dedicam a uma causa, acreditando que o mundo será melhor”, avança Cândido Sobreiro, também ele com o seu trabalho em relações internacionais. São professores, enfermeiros, operários fabris, farmacêuticos, estudantes. São 15 elementos entre os 10 e os 87 anos da senhora Laurentina Silva. “Há um trabalho gigante, uma dedicação enorme, tempo que se rouba à família.” Mas cada minuto vale a pena. “É um ato de cidadania cultural.”
Há 106 anos que o Grupo de Teatro de Avintes, da associação Plebeus Avintenses, mostra o amor a essa causa num trajeto cheio de história, estantes com prémios, e o estatuto de capital do teatro amador conquistado entre as décadas de 1950 e 1970, altura em que a freguesia de Vila Nova de Gaia fervilhava de cultura e era abrigo de grupos informais e mulheres a quem a ditadura proibia acesso ao palco e ali podiam experimentar a arte na clandestinidade. Legado não falta, trabalho também não, muito menos paixão incondicional ao teatro.
“O que distingue as associações de teatro amador é a perseverança e a luta, a tentativa de fazer as coisas bem”, constata Pedro Miguel Dias, ator e encenador formado na arte, que conhece os cantos à casa desde pequeno – a família fazia teatro ali, viu muitas peças às cavalitas do pai. A primeira sede foi na garagem de um fundador, hoje tem casa própria e um auditório com 230 lugares, onde ontem arrancou a 43.ª edição do Encontro de Teatro Plebeus Avintenses com 14 peças, duas delas estreias do grupo de Avintes. Todos os fins de semana, até 7 de dezembro, há teatro, música, exposições. Avintes não vive só de pão.
A companhia de teatro residente tem 15 elementos, desde estudantes a reformados, e há três turmas de teatro em formação, infantil, juvenil, para maiores de 65 anos, no horário pós-laboral. Poderá abrir mais uma de adultos. Marcam-se ensaios, é convidado um encenador profissional, estreia-se a peça em casa, anda-se em itinerância pelo país. O jantar é, muitas vezes, a forma de pagamento. Ou mais do que isso. “É muito difícil quantificar o que recebemos e damos às associações que visitamos e que nos visitam, criam-se laços”, diz Pedro Miguel Dias.
Bruno Quelhas Costa é o presidente da associação de Avintes, ator, trabalha num hospital. “Temos de fazer um pouco de tudo.” O grupo tem atuado em associações, escolas, lares de idosos, bairros sociais. “O teatro amador é realmente uma paixão, é uma prova de resiliência em tempos cada vez mais difíceis”, comenta.
Não só em Avintes, em Marvila também. O Teatro Contra-Senso nasceu em 1997 de um sonho de três alunos da Secundária D. Dinis. O batismo teve propósito. Teatro metafórico, poético, disruptivo. Vinte e sete anos depois, mantém-se uma organização sem fins lucrativos e sede em Marvila, Lisboa. Marina Subtil está desde o início. “Temos esse papel de resistência. Temos poucos meios, sim, mas continuamos aqui.” É um coletivo que se dedica a criar e a apresentar peças, sempre a ver a disponibilidade da biblioteca de Marvila ou do auditório Fernando Pessa. “Não temos uma sala de espetáculos, com muita pena nossa”, adianta Sónia Castro. É um sonho da companhia. “Um espaço com boa visibilidade para o palco para recebermos as pessoas.”
O grupo estica e encolhe, 15 elementos são mais ativos, dos 19 aos 60 anos do senhor Saraiva. Pessoas que acumulam com os empregos nas áreas da docência, Geografia, História, Arquitetura, Design Gráfico. Todos contribuem, é preciso compromisso. “O teatro não vive só de palmas”, avisa Marina Subtil.
Passar mensagens, fazer pensar
Passar mensagens, fazer pensar
Os apoios são aproveitados até ao tutano. Em Avintes, vêm da Junta de Freguesia e da Câmara de Gaia. A bilheteira é por donativos, as quotas dos 850 associados ativos dão uma ajuda. “Contamos ao cêntimo cada valor que nos chega”, pormenoriza Pedro Miguel Dias. “Tentamos ser autossuficientes. Já provámos que conseguimos, mas as coisas começam a ser difíceis”, acrescenta Bruno Costa.
O Teatro de Balugas não sai da aldeia, a sede é uma sala da Junta de Freguesia. Antes disso, era um balneário de um multiúsos desportivo. O auditório da Junta é o lugar mais próximo para apresentar as peças ou a sala do Teatro Gil Vicente, em Barcelos. Os espetáculos são gratuitos. Os apoios fixos chegam da Junta de Balugães e da Câmara de Barcelos. O Inatel e a CCDR-Norte dão um apoio anual e há sempre três ou quatro empresas que ajudam financeira e logisticamente.
Outro problema é a falta de público. Pedro Miguel Dias vê menos gente na plateia. A missão também passa por aí. “Formar públicos, pessoas que tenham interesse em ir ao teatro, a uma exposição.” Em Lisboa, a oferta cultural é imensa e é complicado competir com tudo o que acontece.
O presidente da Federação Portuguesa de Teatro Amador, Valdemar Mota, conhece as alegrias e dores destes voluntários e sabe de que fibra são feitos. “Na base destes grupos de teatro amador, há uma enorme paixão.” Que se vê e que se sente. “Nota-se que há uma alegria enorme em mostrar o que estão a organizar e o que os seus comparsas estão a fazer.”
Nem tudo é um mar de rosas. “Há uma carga muito excessiva de licenças, direitos de autor, e por aí fora”, observa Valdemar Mota. Há plataformas e candidaturas que são quebra-cabeças. E há concorrentes de peso. “Neste momento, verifica-se que as autarquias locais, juntas e câmaras são cada vez mais produtores de espetáculos.” E assim sobra menos palco para as companhias amadoras. Atualmente, são cerca de 50 inscritas na lista da Federação.
O teatro amador tem particularidades. “Não há grandes efeitos especiais, é um teatro de alfaiate, uma cena interliga a outra”, descreve Cândido Sobreiro. “O teatro sempre foi do povo e para o povo, partimos deste princípio.” Trabalha-se para mostrar teatro mais poético, que não caia na gargalhada fácil. Para passar mensagens e fazer pensar. “O teatro tem a função de alertar. Porque é que a floresta sempre teve carvalhos? Porque estamos a mudar a paisagem com eucaliptos e ventoinhas?”
“Raposos”, penúltima criação, é sobre a construção de uma barragem. O rio seca pressentindo a sua prisão, fica sem água com os seixos à mostra. É um alerta sobre a paisagem e a propriedade da terra. “É dar palco à voz das pessoas que não são ouvidas.” As pedras do rio são verdadeiras, sente-se o cheiro, e são carregadas à pá.
No Contra-Senso, trocam-se ideias, tenta-se manter um ensaio por semana, intensificam-se os encontros quando se aproxima a estreia. “É preciso não esquecer!” lembrou as conquistas de Abril, “Backward and Forward Project” partiu de histórias pessoais para um futuro imaginado, a peça que se segue será inspirada no livro “A metamorfose”, de Kafka. A 19 e 20 de outubro, há workshops ligados ao teatro. É uma maneira de compor o orçamento, além do apoio fixo da Junta de Marvila e da bilheteira. Antes de cada produção, fazem-se contas. “Experimentámos o que temos, vemos o que não temos, e não temos tudo, quanto se gastará com os figurinos. Vamos ser sempre contidos”, garante Sónia Castro.
Só no 14.º ano de vida é que o Contra-Senso conseguiu um espaço na cave de um prédio. Em 2021, em tempo de confinamento, foi inundado por águas de esgoto. Muitos figurinos não foram aproveitados, os ensaios foram remarcados para escritórios emprestados. “Perdemos tanta coisa, um espólio de 20 anos”, recorda Sónia Castro.
O coletivo de Marvila arregaçou as mangas e continuou, apesar do contratempo. Alexandre Neves entrou em 2019. “A gente mantém aquela vontade, aquela garra, de dar o melhor de nós. Fazer uma coisa bem feita, entreter o público e levar a mensagem da melhor forma possível”, conta. O teatro é a possibilidade de passar mensagens, de vestir outras peles. “O teatro é um microfone aberto”, declara Marina Subtil.
O Teatro de Balugas prepara uma peça sobre o conflito da aldeia raiana de Cambedo em 1946. No próximo sábado, 12, apresenta “A furgoneta” no Festival de Teatro de Machico, na Madeira. A história de dois irmãos que reformam o negócio do pai, ou seja, a furgoneta que vendia de tudo pelas aldeias do Minho. E assim se mostra uma serra a ficar sem gente. A 16 de novembro, está no Festival de Teatro de Ovar com “Pão Nosso”, sobre Balugães, onde se amassou muito pão, numa recolha de memórias, ladainhas, cantigas. Atuar num teatro de seis pisos na Hungria ou numa casa do povo de uma freguesia, como já aconteceu, não altera a postura. “Temos o mesmo respeito com o público”, assegura o fundador.
O movimento associativo tem perdido pujança. E o teatro amador resiste. É teimoso, na essência. “Nunca vai acabar, está a ser reinventado todos os dias com novas linguagens”, acredita Cândido Sobreiro.