“Sou assim, sou gago, e está tudo bem”

“Cada gago é gago de uma forma única, não há dois gagos a gaguejar da mesma maneira”, diz Manuel Brásio, compositor, músico, professor

Quem fala assim é gago, assumidamente gago. No entanto, erguem-se estereótipos e mitos à volta de uma perturbação na fluência do discurso, nas suas pausas, repetições, hesitações. Explicações fáceis para uma dificuldade complexa (não, não é uma doença). No terreno, está uma associação que normaliza a diferença. Para passar da perspetiva estigmatizada a uma visão empoderada. Hoje é Dia Internacional de Consciencialização para a Gaguez.

Manuel Brásio é músico e compositor, baterista e percussionista, professor e formador. Gago assumido. “Apresento sempre a minha gaguez e tenho urgência em apresentá-la.” “Não é uma doença, eu sou assim, e sou gago, e está tudo bem”, diz. Na escola, passou por professores que pensavam que estava a gozar. Aos 11 anos, entendeu, na terapia da fala, que a questão não era a sua gaguez, mas as pessoas que faziam da sua gaguez um problema. Há muito que perdeu a paciência para o discurso paternalista e capacitista, para frases como “este gajo não consegue perceber o mundo porque fala assim”. Pressentiu-a e ouviu-a algumas vezes.

Em agosto de 2020, na aldeia de Campo Benfeito, em plena serra do Montemuro, Castro Daire, no Festival Altitudes, Manuel Brásio estreou com José Tiago Baptista, seu amigo e cúmplice, “Quem fala assim”, projeto multidisciplinar com música ao vivo, espetáculo multimédia sobre o potencial sonoro e artístico da gaguez, criado pelo coletivo Interferência – Associação de Intervenção na Prática Artística, do Porto. É uma viagem musical pela gaguez e como ela é vivida por dentro. Numa cena do vídeo, Brásio aparece em grande plano, frente a frente com a plateia, a gaguejar muito. “A minha gaguez é muito musical, sou muito repetitivo, tenho tiques.” “Cada gago é gago de uma forma única, não há dois gagos a gaguejar da mesma forma”, acrescenta. Nas repetições, nas hesitações, nos silêncios.

Daniel Neves Costa é sociólogo, professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, presidente da Associação Portuguesa de Gagos (APG). É gago desde pequeno. “Tenho esta particularidade, mas não a transformo num problema.” Nas primeiras aulas, diz que é gago, que umas vezes vai gaguejar mais, outras menos, coloca os alunos à vontade, que peçam para repetir o que for necessário. “Com o intuito de normalizar e mostrar também que a gaguez pode estar na sala de aula na voz de um professor.”

A APG surgiu em 2005 na aldeia de Alqueidão, concelho da Figueira da Foz, no Baixo Mondego. Começou na lógica de convívios, entretanto, juntou-lhe a parte da comunidade académica e clínica, da terapia da fala e da psicologia, e gente de várias zonas do país. Permanece em Alqueidão numa antiga escola primária, tem cerca de 130 associados, organiza debates, encontros mensais online, quer retomar os encontros de grupo pelo menos no Porto e em Coimbra, vai às escolas superiores de saúde para falar com os futuros terapeutas da fala, para conversas sobre gaguez pela voz de quem é gago. “Temos uma visão da gaguez que assenta na lógica experiencial e não de reproduzir a visão estigmatizada de que se é gago fala mal, que é muito dominante e que acaba por ser interiorizada por muitas pessoas com gaguez e muitos jovens.” “A gaguez não tem de ser uma falha, não tem de ser um erro, faz parte da diversidade comunicativa, faz parte da diversidade das pessoas”, sublinha Daniel Neves Costa.

Brásio é uma pessoa social, fala muito, gosta de festas, concertos, de conversar, de conviver. Se amanhã acordasse e o mundo fosse perfeito na gaguez, haveria calma e sossego. “As pessoas não têm tempo de nos ouvir. Ser gago é uma forma de resistência a uma produção constante.” Para o ouvir, é preciso calma. “A ideia de não normatividade abre espaço para sermos nós próprios”, comenta.

Luísa Afonso tinha três anos quando começou a gaguejar, a mãe procurou psicólogos e psiquiatras, correu uns e outros, ninguém podia ajudar. Dos cinco aos 10 anos, andou na terapia da fala, fazia jogos e exercícios. “Na escola, tinha miúdos que me gozavam por gaguejar”, lembra. No 10.º ano, nova escola, bem maior, novos amigos. “Gaguejava e tinha alguma vergonha, sempre fui muito tímida, introvertida.” Nada de mais, confessa, comparado com o que escuta sobre o bullying de hoje, lá conseguia controlar o desconforto e a insegurança.

“Foi muito importante descobrir-me como gaga e perceber que posso viver com isso e que não é um bicho de sete cabeças”, relata Luísa Afonso, farmacêutica

Entrou na universidade e veio o receio das apresentações orais. “Sofri muito com isso, era horrível.” Voltou à terapia da fala, um outro terapeuta, abriu-se um novo mundo. “Fez-me perceber que tinha fases em que não gaguejava, foi tudo uma descoberta incrível. Foi muito importante para me descobrir como gaga e perceber que posso viver com isto e que não é um bicho de sete cabeças.” E uma certeza. “Não é uma doença, é uma característica.”

Quando saiu da universidade, com o curso de Ciências Farmacêuticas, temeu estar ao balcão de uma farmácia, pensou que não correria bem. “Não queria trabalhar com o público, expor-me todos os dias e a todas as horas.” O estágio correu tão bem que ficou cinco anos. Agora é diretora técnica de farmácia e continua no atendimento ao público. “É muito engraçado, aprendi a não gaguejar tanto quando estou ao balcão.”

Não é susto, não é trauma, não é respiração

Luísa Afonso coloca a questão ao contrário: “E se fôssemos todos gagos e houvesse uma pessoa que não gaguejasse? Essa pessoa é que era a esquisita e não nós.” É mulher e é gaga e sente que não é a mesma coisa ser homem gago. Há outra tolerância, mais compreensão. “Às mulheres exige-se que sejam boas donas de casa, mães, trabalhadoras, bonitas e jeitosas… e depois gaguejam. É um impacto contra essa perfeição que nos solicitam”, observa.

No “Quem fala assim” há uma vontade de reflexão e consciencialização social para a tolerância. Brásio sabe o desconforto que é ouvir o seu gaguejar para quem está sentado na plateia, para quem não sabe se há de rir ou se há de ficar sério. “A melhor forma de tratarmos as diferenças é conviver com elas.” Normalizá-las, dar-lhes representatividade. O espetáculo andou em digressão pelo país e continua no repertório da Interferência, preparado para qualquer palco.

Brito Largo é terapeuta da fala, trabalha no serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, garante que a gaguez não vem de um susto ou de um trauma, não é um problema cognitivo ou uma questão de controlar a respiração. “É uma perturbação na fluência do discurso.” “Não é uma doença e, portanto, não se pode falar na lógica doença-cura.” Sabe-se que há alterações estruturais em áreas mínimas do cérebro que interferem no processo da fala, na mecânica do discurso. Há uma tendência genética, mas não há causa-efeito nessa transmissão familiar.

“A gaguez não tem cura, mas tem solução”, afirma Brito Largo. Pode diminuir substancialmente. Nas suas sessões, quer saber, antes de tudo, como o gago se sente, vive e lida com essa diferença e com a reação de quem os ouve, com os interlocutores. “A gaguez não desaparece, o que desaparece, o que muda, é a forma como se encara a gaguez e a interação com os outros.” Para o terapeuta da fala, é uma diferença que não retira valor. Pelo contrário. “Combatem adversidades e enfrentam o mundo inteiro com uma condição que dificulta a vida.” Os gagos são rijos.

As estimativas indicam que cerca de 1% da população portuguesa é gaga, à volta de 100 mil pessoas. Talvez sejam mais, comenta Daniel Neves Costa, podem chegar aos 2%. A ideia de que há menos gagos agora do que há uns anos não bate certo com a realidade. “Não há menos gagos, há uma maior invisibilidade”, explica, fruto da tecnologia e de um quotidiano vivido sobretudo nas redes sociais, nas plataformas.

“A gaguez não tem de ser uma falha, não tem de ser um erro, faz parte da diversidade comunicativa, faz parte da diversidade das pessoas”, sublinha Daniel Neves Costa, sociólogo, presidente da Associação Portuguesa de Gagos

Há figuras públicas gagas. Raul Solnado era gago, a jornalista e apresentadora de televisão Maria João Seixas e o músico Mário Laginha são gagos. Há ainda o caso de Joe Biden e de Trump ter usado essa gaguez como arma política. Joacine Katar Moreira, quando era deputada, colocou a gaguez na agenda mediática, e a APG chegou a escrever um comunicado quando o gozo era evidente. “Ainda é muito fácil desqualificar uma pessoa pela fala”, repara Daniel Neves Costal sobre esse momento. A atriz britânica Emily Blunt falou publicamente sobre a sua gaguez, o cantor e músico Ed Sheeran também o fez.

No sábado, para assinalar o Dia Internacional de Consciencialização para a Gaguez, a APG organizou a conferência “Navegar a gaguez no mundo de hoje”, no Auditório D. Pedro V, em Lisboa, com várias temas e intervenções. A APG tem parcerias internacionais e vários propósitos. “Acima de tudo, mostrar que é preciso fazer uma inflexão da visão estigmatizada para uma visão mais empoderada da gaguez”, reforça Daniel Neves Costa. De viver o direito à gaguez. “Uma pessoa por gaguejar não tem de ser um mau comunicador, a maior parte dos gagos são tagarelas, falam que se desunham.” “Ninguém nasce a gaguejar, ninguém é 100% fluente, é preciso desfazer esse mito”, acrescenta.

Luísa Afonso faz parte da APG e não esquece a intervenção de um homem de meia-idade num dos primeiros congressos a que assistiu. “Levantou-se e falou sobre a sua experiência de gago e foi como uma libertação para ele. Há pessoas que estão há anos fechadas.” Isoladas na sua gaguez. “E isso, de facto, marcou-me.”