Somos um país de cunhas?

É um fenómeno social imune a alterações estruturais e que destapa imperfeições do sistema, desconfianças na engrenagem. As cunhas são um expediente de uso frequente que se normalizou. E não é algo exclusivamente português, não é fado, não é sina. É sobretudo um jogo de poder. Um mecanismo que subsiste.

O licenciamento da casa ou do anexo que empancou na burocracia. O papel das Finanças que é necessário com rapidez. A consulta médica que é preciso marcar com urgência (para ontem, se possível). O concurso público que vem mesmo a calhar para aquele familiar. Um telefonema para uma vaga num colégio de elite. O ajuste direto que não cumpre com valores, com as normas da Administração Pública. Os lugares de topo de uma empresa privada que não são publicitados. E a cunha, essa forma de organização da sociedade, quase um modo de vida, aparece. Instalada e tolerada, contestada em surdina porque há dois pesos e duas medidas e não há almoços grátis. Por que razão somos um país de cunhas?

João Ribeiro-Bidaoui, doutorado em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa, escreveu a primeira tese de doutoramento nacional sobre o tema. “A cunha como conduta social: as figuras que as pessoas fazem” é o título do seu trabalho de 459 páginas. A dissertação deu origem ao livro “Anatomia da cunha portuguesa” para simplificar a linguagem e as conclusões da sua investigação. No ano passado, publicou “O compadrio em Portugal”, na coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Cambridge e em Direito pela Universidade de Coimbra, estudou a cunha como conduta social, suas camadas e texturas. Um dos pontos da sua tese tem como curiosa chamada o que, em termos populares, resume o conceito: “Um puxar de cordelinhos. Um toque aqui. Uma palavra ali. Um primo conhecido acolá – meter uma cunha como controvérsia social”.

“É um mecanismo de poder que desafia a nossa forma de agir e beneficia o status quo de quem exerce o poder”, refere à NM João Ribeiro-Bidaoui. E tudo o que corrompe a norma, corrompe o contrato social. O viver em sociedade. E o espírito de sobrevivência, a tal arte do desenrascanço, vem à tona.

Não há um caminho de sentido único para explicar uma cunha. “Em cada situação há uma justificação”, observa João Ribeiro-Bidaoui. A pessoa e suas circunstâncias. “Pode ser por acesso a um emprego de qualidade, pode ser por necessidade económica, pode ser por reconhecimento de si, por esse estatuto de desbloquear pedidos.” O cheiro e gosto de poder. “Se deixa de aceder a esse poder, é uma pessoa com menos relevância, com menos autoridade.”

Uma cunha pode também ter uma razão humanitária. “Aceder a um pedido por compaixão, por empatia.” O que acontece muitas vezes, explica, “por se reconhecer que o sistema não é justo, por achar que está a corrigir injustiças sociais, falhas no sistema”.

Miguel Ângelo Rodrigues é professor, doutorado em Ciências da Administração, vice-presidente da Escola de Economia, Gestão e Ciência Política da Universidade do Minho, em Braga, tem investigado questões da gestão pública, governação de parcerias público-privadas, autarquias locais. Há três grandes fontes, adianta, que justificam a cunha. Primeira, o legado histórico. “Quer queiramos, quer não, depois de muitos anos de democracia, o modelo administrativo foi criado durante o Estado Novo, o poder absoluto do ditador fomentou este processo de cunhas.” Quem tem poder, tem a vida facilitada.

Segunda, o poder. “Somos um país de elites muito curtas e espantámo-nos com isso. A concentração nas elites é tão grande que é inevitável que isso aconteça.” Terceira fonte, a burocracia. “O que torna a cunha quase legítima é a complicação burocrática.” O sistema empanca, a engrenagem não anda, os assuntos não se resolvem, a máquina não é eficiente. “Tudo isso dificulta a vida ao cidadão que resolve através de um amigo, de um telefonema, de um jeitinho.” Contornam-se barreiras. “E explica-se a racionalidade de atalhar caminho”, salienta o professor. Há sempre uma razão e uma explicação para a cunha.

Susana Coroado, investigadora na área da corrupção, atualmente na Universidade de Antuérpia, Bélgica, ex-presidente da Transparência e Integridade, autora do livro “O grande lóbi”, acaba de analisar os dados do mais recente Eurobarómetro “Atitudes dos cidadãos face à corrupção na UE em 2024”. Por um lado, os portugueses consideram que a corrupção aumentou. Por outro, há uma maior intolerância a esta prática.

A percentagem é reveladora: 96% dos portugueses dizem que a corrupção é comum em Portugal, uma subida em relação aos 93% do ano passado, e 78% referem que o nível de corrupção aumentou nos últimos três anos. A investigadora destaca outros indicadores: 59% dos empresários portugueses respondem que o favorecimento de amigos e familiares é uma prática alargada no nosso país, em contraponto com os 48% da média europeia; e 73% dos cidadãos portugueses dizem que não é aceitável pedir favores na Administração Pública, enquanto a média europeia é de 65%. “Estudos de opinião mostram que há uma perceção muito grande de que existem cunhas, favorecimentos de pessoas próximas.” O que, comenta, acaba por ser “um fenómeno que se autoalimenta”, um círculo vicioso aceite socialmente.

E há ainda o grau de relação para a cunha produzir os seus efeitos. “Afinidade familiar, colegas de faculdade, camaradas do partido, políticos de diferentes partidos”, elenca João Ribeiro-Bidaoui. Há outras redes, como a maçonaria, a Opus Dei. Tudo a carburar, a cunha mexe e resulta.

Mudam-se os regimes, mantêm-se os hábitos

Há nuances nesse universo da cunha. Um deles é quem pede a cunha, a eterna dualidade do nós e dos outros. “Quando somos nós a pedir a cunha, conseguimos racionalizar os nossos pedidos, menos quando são os outros. As pessoas aceitam mais o ‘rouba, mas faz’ do que o ‘family gate’, governos que contratam pessoas da mesma família”, assinala Susana Coroado. João Ribeiro-Bidaoui toca nesse ponto no seu livro. “Em privado, toleramos a cunha no dia a dia, no que nos é próximo. Mas rasgamos as vestes em relação a outros, mais distantes, sobretudo quando as suas falhas são expostas em público – aumentando a raiva quando se trata da classe política”, escreve.

Há o cidadão anónimo e há a arena do poder. E há um caso recente, o das gémeas, que arrastou o nome do presidente da República para o centro da polémica por um eventual favorecimento. É aceite que uma mãe e um pai façam tudo para salvar um filho, que recorram à sua rede de contactos familiares, de amizades, de partidos. Quando o caso passa para essa dimensão política e pública, o assunto muda de figura. “Quando mete a questão política, há o repúdio total”, repara Miguel Ângelo Rodrigues. “O político é visto como alguém com acesso ao poder, como elite privilegiada, e se ainda assim fura as regras, isso é quase considerado abuso”, sublinha. Com o cidadão anónimo, é outra conversa, é o discurso, segundo o professor: “A culpa não é minha, a culpa é do sistema, porque o modelo não está a funcionar. A cunha é legítima, faz sentido, é o desenrascanço”. E que, muitas vezes, fica entre quatro paredes. “Ninguém anuncia em público os favores que pediu, os favores que fez, há consciência da ilegitimidade”, diz João Ribeiro-Bidaoui.

Existe, é uma evidência, continuará a existir. “A cunha nunca vai acabar por completo, não existem sociedades perfeitas”, sustenta João Ribeiro-Bidaoui, que desfaz o mito de que é algo específico de Portugal e dos portugueses. “É preciso acabar com essa conversa”, avisa. E repete-o. “Em todas as sociedades existem estes mecanismos alternativos à regra.” E escreve-o no seu livro “O compadrio em Portugal”. “Por muito maravilhosos que nos julguemos na nossa portugalidade, seria de uma arrogância inqualificável considerarmo-nos também como sede do império de tais problemas civilizacionais (seja o quinto, o sexto ou o sétimo império de uma qualquer poesia depressiva que nos encante e adormeça).” Não é fado, não é sina. Entranha-se de tal forma que se chega a um ponto em que não se consegue distinguir o bem do mal. Se não prejudica o bem público está tudo bem, pensa-se. Essa é outra conversa com pano para mangas.

A narrativa de que qualquer pessoa meteria uma cunha, sobretudo em questões de saúde, prevalece, segundo Susana Coroado. “Há pessoas que pura e simplesmente não têm esses contactos e esquecemo-nos disso.” O que destapa a questão da desigualdade e da imparcialidade dos serviços. “O contrário de corrupção é a imparcialidade, ou seja, todos terem acesso ao mesmo”, realça a investigadora.

Há um pormenor que não escapa a João Ribeiro-Bidaoui – a quantidade de cartas e emails que chega à Presidência da República, milhares todos os anos. Milhares de pedidos. “A Presidência e o gabinete do primeiro-ministro fazem mal quando só reencaminham.” O que deveria ser feito, em seu entender, era dar respostas pedagógicas, explicar aos cidadãos o que podem fazer, como o devem fazer, quais os procedimentos, quais os seus direitos. Em seu entender, reencaminhar para serviços e gabinetes ministeriais e dar uma resposta formatada não levam a lado algum, apenas se valida esse caminho, essa forma de agir.

“O país está melhor? Está. O escrutínio é maior? É. Mas não vamos ser poéticos, as cunhas estão enraizadas no nosso sistema cultural e administrativo. Existem e continuarão a existir”, nota Miguel Ângelo Rodrigues. Em 2009, Carlos Fiolhais, professor universitário, escrevia um artigo de opinião intitulado “No país da cunha”, no jornal “Público”. E terminava assim: “Mudam-se os tempos, mas não se mudam os maus costumes. Eça e Almada retrataram o país das cunhas e, ai de nós, continuamos parecidos com o retrato.”