Valter Hugo Mãe

Setembro


Fico mais velho em Setembro, vão embora os banhistas, a cidade volta às nossas mãos e certa solidão também é um recomeço. O mês de Setembro é promessa de maravilha, ainda que o Outono espreite e os dias esfriem e escureçam. A decadência do Mundo oferece o recolhimento e a construção íntima, o esforço para estabelecer no espírito uma estação mais afinada com nosso sonho, nossa identidade.

Ando a ameaçar o meu amigo Albuquerque Mendes de o abandonar e trocar por outro pintor, o António Olaio, que é um artista brilhante e, há trinta anos, diziam-me que éramos parecidos. Tenho planos para escrever outro romance, uma aventura de duas costureiras com que cismo há anos. Quero emagrecer, passar um mês intenso no Brasil, mudar de terra, ler mais, parar com a mania dos desenhos, fazer filmes, dormir a horas populares, fazer a depilação da moda, chorar na auto-estrada a ouvir Mahler, ouvir mais vezes o Mahler e não querer saber se ter cinquenta e três anos de idade é alguma sentença.

No tempo em que regressava à escola, com mochila nova, os cadernos limpos, os livros a estrear, tudo se propunha a outra vida. Cada ano lectivo era como o convite para ser outra pessoa, aquela que deveria ser, mais do que aquela na qual, por defeitos e preguiça, reincidia. Hoje, sem mais escola senão a da deriva, por fascínio ou temor, tenho sempre a vontade de refazer essa oportunidade de outra vida. Que tentadora a possibilidade de repensar cada lugar nosso e aparecer como mais faz sentido, sem medo de finalmente sermos quem queremos ser, libertos sobretudo do que nos cansa e magoa.

Por disparate, digo que trocaria de amizade do Albuquerque Mendes pelo António Olaio, mas é só para dizer como gosto dos dois. Não se trocam pintores assim. Às vezes, nem quadros, porque os quadros chegam às nossas paredes cheios de significados e tornam-se quase todos talismãs. São seres místicos que nos povoam as casas e sustentam nossa necessidade de relações duradouras e de deslumbre, mesmo que um deslumbre atónito e sem completa explicação.

O que trocaria, na verdade, é a ideia de ter menos quando se pode ter mais, no sentido bravo dos afectos, no sentido bravo de gostar de mais gente, cuidar de mais gente, declarar a mais gente que nos importa, que admiramos quem são e o que fazem, que nossas vidas ganham razão também pelos instantes em que só nos ocupamos de pensar nos outros. Em Setembro, por ser o meu Natal e por se recolher o Mundo como para dentro de seu ninho, deito o coração à rua e mando-o voltar só quando cresça. Cheio de pessoas que quero ver melhor e pessoas que nem nunca vi.