Depois do acordo entre Governo e professores para a recuperação do tempo de serviço congelado, os ingredientes para a pacificação parecem estar reunidos. O próximo ano letivo promete mais tranquilidade, só que a escola é uma fábrica de problemas e é preciso tempo. A falta, crónica e sistémica, de docentes não se resolve do dia para a noite, mas há medidas, há avanços, há esperança. As negociações seguem. E a procissão ainda vai no adro.
Estávamos em setembro, o ano era 2023, as escolas a voltar a encher-se de alunos e a contestação social dos professores, que já vinham de protestos no ano letivo anterior, não só não arrefecia como ganhava ainda mais fôlego. Greves, algumas por tempo indeterminado, muitas manifestações, marchas pelo país, serviços mínimos, um braço de ferro com o Governo, a luta de uma classe que se uniu e para a qual o copo encheu e transbordou. O ano foi atribulado, fez-se com cartazes pendurados nos gradeamentos das escolas, com docentes às portas logo de manhãzinha em cânticos de protesto. Foi um grito desertor. O ponto de viragem acabaria por chegar já em 2024, após a queda do último Governo. Fernando Alexandre assumiu o Ministério da Educação depois de os portugueses irem às urnas, era abril, quis acelerar as negociações, pacificar os ânimos.
E em maio chegava o acordo há tanto ansiado. Sete sindicatos (em 12) davam luz verde à tutela para avançar com um calendário de recuperação do tempo de serviço que os professores viram ser-lhes congelado há anos. “Este Governo anunciou a intenção de cumprir a promessa eleitoral que tinha feito e, em menos de um mês, cumpriu”, congratulava-se então o ministro. Em causa estão seis anos, seis meses e 23 dias, o tempo de serviço que os docentes sempre exigiram recuperar. Será gradual, vão recuperar 599 dias já neste mês, 598 dias a 1 de julho de 2025, 598 dias a 1 de julho de 2026 e 598 dias a 1 de julho de 2027. São mais de 100 mil os professores abrangidos, com a consequente progressão na carreira (subida de escalão) e devido acerto salarial.
Feito o preâmbulo, a dias do arranque do novo ano letivo, adivinha-se agora uma maior paz nas escolas? “Isto trouxe mais do que paz, e falar de paz depois dos últimos anos é deveras importante. O momento do acordo celebrado com o Ministério da Educação foi histórico e é significativo para termos um ambiente mais favorável nas escolas. Recuperámos a totalidade do tempo, não foi só um dia. Garantimos que, em dois anos e dez meses, milhares de professores progridam dois ou até três escalões. Claro que isto se traduziu num contentamento enorme.” Pedro Barreiros, líder da Federação Nacional da Educação (FNE), um dos sindicatos que assinaram o acordo, diz que isso não invalida outras lutas que ainda serão travadas, que sabe que este não é o acordo perfeito, que houve cedências de parte a parte, mas que “hoje milhares de professores podem olhar para a sua carreira com uma perspetiva de futuro bem melhor do que era previsível há cinco meses”. E isso é ponto assente.
Mário Nogueira, da Federação Nacional de Professores (Fenprof), um dos sindicatos que não assinaram o acordo por o considerarem insuficiente (um dos motivos era por deixar de fora muitos professores que já estão no último escalão, os quais nunca poderiam ver recuperado o tempo de serviço congelado), reconhece que “é inegável que esta era uma questão importantíssima e que se resolveu, não totalmente, mas quase”. “E ainda bem que não assinámos o acordo, porque depois pudemos requerer uma negociação suplementar que conseguiu que muitas propostas que não estavam previstas no acordo inicial fossem contempladas, no que toca à avaliação de professores, à formação, à progressão”, sublinha. A recuperação do tempo de serviço, embora fosse bandeira de luta, não era a única reivindicação, como Nogueira bem lembra. E o grande fator de instabilidade nas escolas, a falta de professores, perdura. Lá iremos.
Para já, foquemo-nos nos avanços e no que eles representam no imediato. Ministro da Educação nos anos 1990, no Governo chefiado por António Guterres, Eduardo Marçal Grilo ainda vai às escolas com regularidade para dar palestras e tem sentido um clima de entusiasmo. “Este foi um passo muito importante para trazer alguma paz à relação dos professores com o sistema, muito importante para a apaziguar. E não tenho a mais pequena dúvida de que este será um ano mais calmo.” Há problemas, isso há, “alguns são estruturais, não se resolvem com uma varinha de condão, com uma ou duas medidas, mas há passos positivos”. Marçal Grilo espera mesmo que haja um virar de página, “até do ponto de vista da imagem pública, em que se passou muito a ideia de que os professores não eram considerados, não constituíam um profissão digna, o que não é verdade”. “Importa que todas as políticas agora sejam no sentido de dignificar cada vez mais a profissão e a formação, porque precisamos de bons professores, são o elemento fundamental para o futuro do país.”
A crónica e sistémica falta de professores
Tanto são que a falta de docentes continua a abalar o sistema e a fragilizar a escola pública, ano após ano. Na última segunda-feira, os números já adivinhavam o descalabro e as manchetes davam conta disso mesmo: se as aulas começassem nesse dia, cerca de 122 mil alunos não teriam professor a, pelo menos, uma disciplina. A escassez, já se sabe, afeta sobretudo o sul do país, Lisboa, Setúbal, Beja e Faro. E disciplinas específicas, como Informática, Geografia, Português, Matemática. Segundo José Augusto Pacheco, investigador no Centro de Investigação em Educação na Universidade do Minho e professor catedrático na área das Ciências da Educação, “esta não é uma realidade só nossa, afeta Portugal e a grande maioria dos países”. E é preciso rebobinar a cassete até àqueles anos pós-Estado Novo. “Recorrer à intervenção de outros profissionais sem formação pedagógica é uma das soluções que tem sido adotada e que também já aconteceu nos anos 1980, quando havia uma grande falta de professores devido à massificação escolar dos anos 1970.” Nessa altura, foi necessário formar professores, foram criados cursos e escolas de Ensino Superior, “e o problema foi resolvido durante quatro décadas, mas voltou, e é algo que é crónico e que este Governo não pode resolver na totalidade, porque é sistémico”. Aliás, o próprio primeiro-ministro, Luís Montenegro, já admitia, na quarta-feira, que, “apesar de todos os esforços”, o Governo não pode garantir “de um mês para o outro” que haverá professores para todos os alunos a todas as disciplinas no arranque do ano letivo. E o ministro da Educação reconheceu que “isto é uma falha grave da escola pública”, que tem de ser corrigida, “mas que nos últimos anos foi simplesmente ignorada”.
Como diz Mário Nogueira, da Fenprof, “durante muitos anos disse-se que havia professores a mais, que a falta de docentes era uma falácia e o problema foi-se agravando”. Para já, o plano “+Aulas+Sucesso”, lançado pelo Executivo, com 15 medidas de emergência, quer tentar tapar a ferida aberta a curto prazo. O objetivo, ambicioso, é reduzir em 90%, no final do 1.º período, o número de alunos sem aulas.
Entre as medidas está o recurso a professores aposentados, a possibilidade de os docentes adiarem a idade da reforma continuando a dar aulas ou de poderem aumentar o número de horas extraordinárias. O que, para Nogueira, “são cócegas ao problema, que só se resolverá quando houver uma valorização da profissão, quando o salário de um professor deslocado chegar para as despesas”. “A grande questão é que a maioria dos professores está a norte, também porque a maioria das escolas de Ensino Superior para professores está na região Norte. E um professor do norte que tenha de ir para o sul tem despesas, sobretudo com o alojamento, que, na maioria das vezes, o salário não paga. Por isso muitos desistem, abandonam a profissão.” Já para não falar do grande número de aposentações. “Há dias fizemos contas, 2013 foi o ano das grandes aposentações de professores neste século e a realidade é que, desde o início do ano e até final de setembro, teremos mais cerca de mil professores a aposentarem-se do que em 2013, são 2753 ao todo. E o Governo está incapaz de ir buscar os milhares de jovens que saíram.” A classe está envelhecida, “os professores que entraram nos quadros no último ano tinham uma média de idades de 46 anos, antes eram contratados, foram somando anos de precariedade”.
Mas há uma certeza, para Pedro Barreiros, da FNE, é que “se sente uma urgência na tomada de decisões por parte do atual ministro, há negociações, ação, iniciativa”. “Porém, estas medidas pontuais nunca serão suficientes.” A mais emblemática, que gerou mais bruaá, é o recurso a docentes aposentados (segundo o ministro, há umas centenas que já manifestaram interesse) e Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, afirma que “a esmagadora maioria dos professores quer sair do sistema e não quer voltar, porque está exausta, mas esta é uma medida entre 15”. Pelo menos, elogia, “reconhecem o problema e lançam soluções, há que esperar para ver se resultam”. Sendo certo que, apesar de “este ministro ter entrado com o pé direito, enquanto não houver um apoio efetivo à estadia de professores deslocados, o ministério não vai ter grande sucesso nas medidas que preconizou”.
Por isso mesmo, além de um concurso extraordinário para as escolas em que há alunos sem professores, está agora em cima da mesa o subsídio para docentes deslocados a mais de 70 quilómetros de casa, para tentar atrair estes profissionais para o sul do país. A proposta do Governo, entretanto já melhorada, depois de reunir com os sindicatos, prevê um apoio entre os 150 e os 450 euros (e não entre os 75 e os 300 euros, como previsto inicialmente). Mas destina-se apenas aos docentes colocados em escolas onde há escassez de professores, situadas sobretudo na zona da Grande Lisboa, Alentejo e Algarve (na sequência da melhoria, deixou de ser dirigida apenas a professores que lecionam disciplinas para as quais há falta de docentes). O apoio é reclamado há anos, mas nos moldes em que foi proposto inicialmente, acredita Filinto Lima, poderia “criar guerra, para além de ser injusto e violar o princípio da equidade”. Por outro lado, o investigador José Augusto Pacheco salienta que, “se há zonas críticas de falta de professores, tem de haver soluções diferenciadas para essas zonas, mas sem colocar em causa o princípio de igualdade”.
Pelo caminho, as câmaras estão a entrar no debate, Oeiras inaugurou um alojamento para professores deslocados, com quartos a 150 euros com tudo incluído. Cascais vai disponibilizar 105 alojamentos com rendas entre os 150 e os 400 euros. E é o ex-ministro Marçal Grilo quem o diz: “O problema da Educação é um problema de todos nós, do país, não é só dos pais, dos professores, das escolas. Todos temos de ajudar. Já ando nisto há 50 anos e, apesar do que possa parecer, as escolas não são o caos de que se fala e têm-se feito enormes progressos.” Paralelamente, o Governo, afirma, está a tentar “socorrer-se de todos os instrumentos possíveis” para ir buscar professores. “Uns terão mais resultados, outros menos, mas todos os esforços são positivos.”
Mais alunos a estudar Educação
No meio de tudo, há um dado animador, que traz alguma esperança. Os cursos que formam professores têm mais estudantes este ano (mesmo apesar da aparente desvalorização da profissão docente, há jovens que querem ser professores). Foram colocados 997 alunos, um aumento de 8% face a 2023. E há passos dados, como a atribuição de duas mil bolsas por ano a alunos que ingressem em licenciaturas e mestrados em ensino. É certo que a formação de novos docentes só vai surtir efeitos daqui a anos, e que não compensa as aposentações, na ordem das quatro a cinco mil a cada ano, mas o caminho faz-se caminhando. “É positivo, claro, mas fica muito aquém das necessidades do futuro. As instituições de Ensino Superior de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve, onde há maiores carências de professores, têm de começar a abrir vagas em valor superior ao atual. Todas as vagas abertas nestes cursos foram ocupadas, dá a entender que, se tivessem sido abertas mais, mais alunos teriam entrado”, refere Pedro Barreiros, que recorda o que já aqui foi escrito: a formação de professores ainda é feita maioritariamente a norte e as necessidades estão no sul. “E sabemos que os alunos tendem a escolher instituições mais próximas de casa, até em virtude dos custos atuais da habitação.”
Olhemos, pois, para o copo meio cheio. “Não só aumentaram os candidatos aos cursos de professores, como as notas de entrada subiram significativamente. O que significa que os nossos jovens acreditam que há uma saída profissional digna e que os professores são vitais numa sociedade. Não há futuro para uma sociedade que não tenha professores dignificados”, destaca Marçal Grilo. E nem tudo é traduzível em euros, garante. Mesmo que a questão salarial seja importante, o político defende que, quando um Governo e uma sociedade mostram a relevância e o papel decisivo que os professores têm, “isso dignifica muito, é mostrar que o trabalho que fazem é fundamental, que faz a diferença”. “Os finlandeses fizeram isso há uns anos, com sucesso, uma campanha a dignificar o papel do professor. Mesmo que pareça pouco, a verdade é que mobiliza.”
Contudo, em termos práticos, reclamam-se melhores condições. Não só para professores, como para assistentes operacionais (que têm um papel fundamental na educação fora da sala de aula). Há negociações entre Governo e municípios a decorrer sobre esta matéria e o ministério também já prometeu que vai começar a rever a carreira docente em outubro, mas ainda nada anunciou a este respeito. As reivindicações são todas na mesma linha. Conhecer as colocações mais cedo (e não apenas em agosto), para que os professores possam organizar a sua vida. Subir os salários nos primeiros escalões. Rever as quotas de acesso aos 5.º e 7.º escalões, “até porque num ensino público obrigatório, não faz sentido haver uma carreira em que é tão difícil progredir”, adiciona José Augusto Pacheco. Reduzir a burocracia também, “o essencial do trabalho de um professor tem de ser a questão pedagógica, a sala de aula, a profissão docente já é muito desgastante, é preciso muita resiliência e na última década houve uma funcionarização do professor”. Mais estabilidade, ou seja, menos anos com contratos a prazo. E apoios à deslocação, para todos os que fiquem colocados longe de casa. Para isso, considera Filinto Lima, “o ministro da Educação também precisa do ministro das Finanças do seu lado”, e espera que “este ministro das Finanças seja mais amigo da Educação, que é o baluarte de uma sociedade democrática”.
Os pais e um Observatório de Convivência Escolar
Do lado dos pais, a palavra de ordem é esperança. Quem o diz é Mariana Carvalho, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), que quer que haja sobretudo mais atenção à saúde mental e emocional da comunidade educativa e, neste sentido, “rever a carreira docente e torná-la mais atrativa, para que os professores se sintam acarinhados, é positivo”. A par disso, “com o entendimento para a recuperação do tempo de serviço congelado, espera-se mais paz e tranquilidade este ano”, sabendo contudo que “ainda há muitos desafios pela frente”. A Confap reuniu há dias com o Ministério da Educação, um primeiro contacto para apresentar as preocupações dos pais. “Todos os anos temos esta questão da falta de professores, mas há que esperar pelo início do ano letivo, a nossa esperança é que aquelas medidas de emergência possam diminuir os impactos.”
Voltando à saúde mental, em conjunto com a FNE, com professores, diretores de escolas, o Instituto de Apoio à Criança, a Ordem dos Psicólogos, está a ser criado um Observatório para a Convivência Escolar. “Para combater a indisciplina e a violência nas escolas, que tem vindo a aumentar”, realça Mariana Carvalho. Pedro Barreiros acrescenta que a ideia é “criar um ambiente escolar favorável às aprendizagens” e que se pretende também envolver a tutela, com quem a FNE reuniu esta segunda-feira (dia 9). “O website está praticamente pronto e inclui uma plataforma onde alunos, diretores, pais, professores podem denunciar situações. Faltava uma instituição credível para acompanhar estes casos, para trabalhar na prevenção, organizar iniciativas, debater a questão, não se pode empurrar isto para debaixo do tapete. Com uma escola pública de qualidade todos saímos a ganhar e estar sistematicamente só a apontar defeitos é um erro”, remata o dirigente sindical.
Regressamos ao princípio. O próximo ano letivo prevê-se mais calmo nas lutas, mais pacificado nas dores, mais tranquilo no ensino. Mas o caminho ainda será longo, muito longo. “Agora há que valorizar a profissão docente, focando na questão pedagógica e na valorização social do professor, e certamente vamos ter mais jovens a quererem ser professores”, conclui José Augusto Pacheco.