Ser escritor
Há 25 anos que as pessoas me perguntam como é escrever um livro. Quando a questão surge numa audiência repleta de jovens sonhadores, gasto o tempo necessário para expor a lista de tudo o que considero necessário para o exercício do meu trabalho. Raramente me perguntam como se faz um escritor. Toda a gente acredita que a sua vida dava um livro, muitas pessoas embarcam na aventura, e quem o faz, conta-me que, invariavelmente, escreveu dez páginas e depois parou, porque não sabia como continuar.
A invasão das redes sociais no quotidiano levou as pessoas a pensar que podem fazer tudo e que podem ser tudo. Contudo, não é assim. Tirar bonitas fotografias não é o mesmo que ser fotógrafo, tal como escrever frases tocantes e profundas numa rede social não é o mesmo que ser escritor. Quando sou interpelada por pessoas que exclamam, ‘Ah, você é a que escreve!’ imediatamente respondo, ‘não, você é que escreve post-its com a lista das compras, batatas, cenouras, bananas, eu não escrevo, eu sou escritora’. Há quem se ofenda com tal frontalidade e argumente que é a mesma coisa. Ao que respondo com uma pergunta, à boa maneira socrática, ‘então e um dentista é uma pessoa que arranca dentes, ou é um dentista?’
A vulgarização invadiu todas as dimensões da condição humana. Terapeutas sem formação académica, coachs de vão de escada, alminhas que um dia acordam e decidem que vão ser isto ou aquilo, só porque lhes apetece. Conheço pessoas que vendem cursos de escrita criativa e escrevem uma média de dois erros de ortografia ou de sintaxe por parágrafo. Até podem ter publicado um ou dois livros, mas que, lamento, não são escritores.
À mesma pergunta que surge num jantar em casa de amigos, só me apetece dizer que às dez da noite não me apetece falar de trabalho. Às vezes digo mesmo, correndo de novo o risco de soar arrogante. Já me cansei de desmistificar a visão romântica que imagina que os escritores têm momentos de inspiração à mesa de uma esplanada perante uma bela paisagem, quando a inspiração vem. A inspiração não vem, cultiva-se. Todos os escritores que conheço encaram o seu trabalho com seriedade, consistência e abnegação.
Em 2018, pedi a um amigo que é florista de profissão que me deixasse passar duas tardes por semana na sua loja para beber da sua arte. Aparentemente tenho algum jeito, aprendi a fazer bonitos arranjos de flores, mas isso não fez de mim uma florista. Com a escrita, passa-se o mesmo. Ser escritor é um ofício a tempo inteiro, ainda que grandes escritores tenham tido outras profissões que lhes permitiram pagar as contas, como o Eça de Queiroz, o Fernando Namora ou o António Lobo Antunes. Todos encaravam a escrita como algo muito difícil, uma segunda vida que era a primeira, pela paixão com que a ela se entregavam.
Escrever um romance é um processo difícil, demorado e nada linear. É o resultado de meses de trabalho, de semanas mergulhada no silêncio, de incontáveis horas de trabalho, de inúmeros momentos de dúvida. É sempre uma luta diária e silenciosa, na qual nos vencemos a nós mesmos. Eu que o diga, ao terminar o vigésimo romance esta semana.
Lamento, mas eu não sou aquela que escreve. Sou escritora. Não é, nem nunca será a mesma coisa.