Salve-se quem puder
Já poucos se lembram da tragédia do agente Irineu que perdeu a vida em 2005, quando o jipe da PSP em que fazia patrulha, no Bairro da Cova da Moura, foi alvo de uma emboscada. Quatro indivíduos dispararam à queima-roupa, Irineu foi alvejado 22 vezes, seis delas na cabeça. O agente Saramago, que ia ao volante, escapou por milagre. Irineu tinha 33 anos e deixara a aldeia de Soeiro, no distrito de Bragança, 11 anos antes, para vir para Lisboa cumprir o sonho de ser polícia. Não foi o único agente a perder a vida naquele bairro nas últimas décadas, conhecido pela violência.
Relembro este episódio a propósito da ideia de que as forças de segurança pública são mal preparadas e atreitas ao abuso do poder que ganhou lastro sem precedentes durante as últimas semanas. Em paralelo, instalou-se a tendência generalizada em hiperbolizar causas, carrascos e vítimas que está a alastrar como uma praga em vários órgãos de comunicação social.
Como chegámos aqui? Com a massificação das redes sociais ao longo de quase duas décadas, instalou-se o hábito de encontrar um tema semanal para empolar e dele apurar um culpado. Gradualmente, as pessoas passaram a procurar as notícias nas redes antes de recorrer a órgãos de informação, apesar das mentes mais evoluídas saberem que nas redes não existem nem ética nem deontologia jornalísticas. É o salve-se quem puder, a versão moderna da justiça popular. O pelourinho para o enforcamento está lá e a intenção de linchar a vítima em praça pública também. Atrás de um teclado é fácil insultar, denegrir e tentar destruir quem quer que seja. A impunidade é o maior escudo da maldade.
Para quem teve filhos pequenos no início do milénio, relembro os Pokémons. Eram às dezenas, possuíam poderes especiais, como é apanágio de qualquer super-herói que se preze, e tinham uma característica que nunca esqueci, entravam em “involução”. A sua personalidade perdia qualidades, o seu caráter tornava-se duvidoso e agiam por dolo.
Vivemos na sociedade do entretenimento. Basta assistir aos comícios de Trump, cujos discursos cheios de raiva, de mentiras e de disparates são aplaudidos por milhões. Ou ver Kamala Harris a convidar estrelas da pop para prestigiarem os seus comícios. A sociedade das aplicações e do entretenimento está a engolir a sociedade da informação. Já poucos se importam em apurar onde reside a verdade dos factos, mesmo quando esta se apresenta plasmada como uma evidência.
O que têm os Pokémons e a sociedade do entretenimento a ver com a segurança e a ordem pública? Tudo, porque sem a análise criteriosa dos factos, não é possível apurar a verdade que deles decorre. Existe um tempo que é necessário dar à justiça e esse tempo não é respeitado. Quando os meios de comunicação agem como justiceiros, o princípio da separação de poderes fundamental à prática da democracia está em risco. E sem segurança nem ordem pública, a democracia estará sempre ameaçada.