Recordações
Vimos a sair do restaurante, uma daquelas maratonas de domingo que um homem da minha idade já se pergunta se não poderá ser a última, e é então que me ocorre. O dia está fresco mas não chuvoso, e o mar cresce à nossa esquerda como um espectro, São Jorge e o Pico e o Novo Mundo estendendo-se para lá do cemitério e da igreja abandonada. A Marta espera-nos junto ao carro – ficou a pagar a conta enquanto eu o entretinha. Ele vai à minha frente, de quatro sobre o alcatrão, fazendo rolar o carrinho roxo, a rir. E eu pergunto-te: será esta?
Isto é: “Poderá ser esta a sua primeira memória?”. Eis algo que me tem povoado muito: qual será, um dia, a memória mais remota do meu filho? A qual chamará o Artur a sua primeira recordação? Como a guardará ele, com nostalgia ou com amargura? De que lhe servirá ela, de refúgio ou punição? E o que é que eu poderia fazer para propiciá-la o melhor, o mais segura e o mais feliz possível?
As recordações da infância são um dos pilares sobre que assentamos aquilo que somos, e o modo como as narramos definem-nas tanto a elas como a nós. Eu tenho andado à volta com a sequência das minhas, nos últimos anos, e até pode acontecer que da resposta a essas perguntas dependa o balanço sobre o que foi a minha infância e depois a minha idade adulta ainda durante muitos anos, se essencialmente feliz ou miserável. As narrativas que construímos, as histórias – sobre o que foram as coisas, sobre como nos sentimos perante elas, sobre as marcas que deixaram em nós –, não apenas contaminam, mas definem a própria natureza delas.
Por exemplo: eu sei que algumas das minhas primeiras memórias são da vinda dos meus tios de França à ilha, do rompimento de relações entre os meus pais e os meus avós – uma infeliz tradição da família –, do grave acidente que nos apanhou a todos de surpresa numa tarde de Verão e da nossa mudança temporária para a freguesia de São Mateus. Mas não sei a cronologia, se aconteceram todas seguidas ou em anos diferentes (caso em que talvez não fosse Verão naquele dia), e menos ainda a ordem por que aconteceram. Há possibilidades mais inócuas do que outras, mas agora não tenho a quem perguntá-lo.
E com o Artur, agora que não tarda a lançar a primeira pedra do seu edifício, como será? Posso ajudar? Estarei eu à altura das suas necessidades, como se calhar não estiveram comigo?
Ou talvez não, talvez eu não tenha de – talvez nem sequer deva – fazer o que quer que seja a não ser continuar a municiá-lo de experiências, rotinas e conversas significativas, que o resto hão-de ser o tempo e ele próprio a fazer. Mas, ainda assim, assusta-me. É demasiado crucial, tudo isto, para que o abordemos com a ligeireza com que o abordamos sempre.