Acumular é rápido e fácil e, por isso, a moderação é para aqui chamada. Não se trata de uma questão de espaço, é mais uma questão de cabeça. E de outras coisas: criatividade, aprendizagem, diversão, interesses, características.
Haverá uma linha que determina o número exato de brinquedos que uma criança deve ter para além da qual se passa para o domínio do excesso? Não, não há. Aliás, o exagero é um conceito subjetivo. Se houve tempos e gerações em que os brinquedos eram uma preciosidade, estimados até ao último dia útil das suas vidas, hoje são mais banais, oferecidos em todas as festas. Um aniversário e prendas sem fim, de amigos, da família. No Natal, mais uma batelada de objetos para brincar. Como gerir tamanha oferta? A quantidade interfere no desenvolvimento dos mais novos? Quantos mais, maior desinteresse?
Inês Afonso Marques, psicóloga clínica, autora do livro “A brincar também se educa”, recorda que antigamente não havia tanta variedade e oferta. Hoje os brinquedos estão em todo o lado: supermercados, livrarias, papelarias, postos de correio, estações de serviço, lojas, Internet. “Hoje as crianças têm acesso aos brinquedos com uma facilidade imensa e, muitas vezes, é difícil de controlar.” O que tem impacto. “Muitos brinquedos novos, a surgir a todo o momento, dificultam que as crianças se relacionem emocionalmente com eles e que escolham aqueles que estimulam o seu interesse e a sua imaginação”, avisa.
Determinar um número certo de brinquedos é complicado. Qual a quantidade ideal? Não há resposta. “Não existe um número definido para determinar a linha do excesso, mas é importante considerar que a qualidade supera a quantidade. Por isso, há que ter conta a forma como esses brinquedos irão ser utilizados para promover o desenvolvimento saudável de uma criança”, responde Paulo Dias, neuropsicólogo e hipnoterapeuta.
Berta Pinto Ferreira, médica psiquiatra da infância e adolescência do Grupo Lusíadas, também não tem máquina de calcular para a questão. “Não existe um número adequado de brinquedos. Porém, alguns estudos demonstram que as crianças com menos brinquedos ficam mais atentas, focadas e criativas. Distraem-se com menos facilidade e conseguem encontrar mais maneiras de brincar com o mesmo objeto/brinquedo”, refere.
Controlar o excesso é um grande desafio, o bom senso é importante. “Uma quantidade moderada de brinquedos é mais vantajosa do que o excesso, que pode resultar numa sobrecarga de estímulos e consecutivo desinteresse por parte da criança. É através desse equilíbrio que as crianças podem aprender a apreciar verdadeiramente cada brinquedo”, diz Paulo Dias.
A psicóloga Inês Afonso Marques usa a mesma palavra: equilíbrio. “O equilíbrio está em ter brinquedos que encorajem a aprendizagem e a diversão, mas não numa quantidade que seja de difícil gestão para pais e filhos.” “Embora não haja um número ‘certo’ de brinquedos, quando uma criança não brinca com os seus brinquedos de forma persistente, ficando abandonados numa prateleira ou num fundo de uma gaveta, ou quando se esquece deles, muito provavelmente tem brinquedos a mais”, acrescenta a psicóloga.
Paulo Dias apresenta uma imagem bastante comum: uma criança sentada num tapete com muitos brinquedos à volta pode estar feliz, mas terá alguns problemas em focar a sua atenção e valorizar cada objeto. “Essas dificuldades podem ter um determinado impacto no desenvolvimento cognitivo, especialmente no que diz respeito à atenção e concentração. Esse excesso também pode fazer com que a criança não aprenda a valorizar cada brinquedo, contribuindo para uma atitude de consumismo e desperdício”, sustenta o neuropsicólogo.
Número e comportamentos. Há alguma ligação?
A quantidade até pode ser uma questão secundária, brincar não é. Mais do que os brinquedos, as brincadeiras estruturam a construção da personalidade da criança, segundo Inês Afonso Marques. “Através de uma multiplicidade de brincadeiras, com recurso a diferentes brinquedos (ou materiais), as crianças espelham o seu interior, mostram a forma como compreendem o Mundo, fazem perguntas, partilham dúvidas, constroem sentidos e significados.” Brincar é dos momentos da infância com maior peso no desenvolvimento cognitivo, emocional, social e motor. “Pelo brincar a criança desenvolve a criatividade, a imaginação, a experimentação de papéis e a compreensão do mundo que a rodeia. Ao brincar a criança dá forma aos seus pensamentos, ao que observa, exprime emoções, interpreta o que lhe acontece e experimenta comportamentos.”
Berta Pinto Ferreira concorda. Brincar é uma das atividades mais importantes para o desenvolvimento intelectual, social e emocional da criança. “É na brincadeira que as crianças podem desenvolver a atenção, a concentração, a memória e a imaginação. É por meio das brincadeiras que as crianças descobrem mais sobre o mundo onde vivem e como agir dentro dele”, repara.
São suficientes ou são muitos brinquedos? Os pais costumam pensar nisso. “Na maioria das situações, as crianças tendem a ter excesso de brinquedos porque os pais procuram satisfazer todos os desejos dos filhos. Com a minha experiência profissional, isso talvez seja para camuflar a dor do que eles não conseguiram ter na sua própria infância”, comenta Paulo Dias. Em seu entender, não há um número adequado de brinquedos para cada etapa do desenvolvimento da criança, depende das necessidades e características de cada uma.
E haverá alguma relação entre excesso de brinquedos ou estímulos e alterações de comportamento? “É complexo afirmar que existe uma relação direta entre o número de brinquedos e as alterações comportamentais, porque estas estão dependentes de vários fatores, como a sensibilidade individual das crianças, a idade, a natureza dos estímulos, quantidade de estimulação e o contexto em que ela está inserida. É importante que os pais estejam muito atentos aos níveis de estimulação infantil, ao tipo de brinquedo, ao uso excessivo de ecrãs e brinquedos com atividades sensoriais hiperestimulantes, com sons e luzes”, realça Berta Pinto Ferreira. “Mais importante para o desenvolvimento da criança não é o brinquedo, mas a qualidade das relações interpessoais que se estabelecem na brincadeira: a atenção conjunta, a interação e a comunicação”, reforça a médica psiquiatra.
Para gerir o excesso, Paulo Dias recomenda duas estratégias. “Por um lado, limitar a aquisição de novos brinquedos, incentivando a utilização daqueles que já têm e, por outro, a rotatividade, ou seja, guardar parte dos brinquedos e alterná-los periodicamente pode manter o interesse da criança.” Evitar a acumulação excessiva de brinquedos não é apenas uma questão de espaço, é também proporcionar um ambiente propício ao desenvolvimento saudável e criativo das crianças. Paulo Dias dá mais alguns conselhos: rodar brinquedos para manter o interesse e evitar a sobrecarga de estímulos, doar objetos e envolver a criança nesse processo para promover a generosidade e empatia para quem pouco ou nada tem, informar a família das necessidades da criança de forma a evitar brinquedos desnecessários.
É tão fácil acumular montanhas de brinquedos num abrir e fechar de olhos. Há várias estratégias para contornar o excesso. Ter brinquedos arrumados e organizados em caixas por temas, tipos ou características, e quando é hora de brincar há apenas dois ou três disponíveis. Guardar presentes por abrir para dar noutras alturas. Rever e explorar novos destinos para brinquedos estragados ou que perderam algumas peças.
Inês Afonso Marques faz uma última observação. “A relação que uma criança tem com os adultos de referência, nomeadamente os pais, e o tempo que passam juntos são muito mais importantes do que os brinquedos que tem na infância.”