Jorge Manuel Lopes

Postais do Hemisfério Sul


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

 

 

Apesar da aparente balbúrdia, mais gentil do que tumultuosa, os Hiatus Kaiyote mantêm uma elevada estabilidade de rumo. Quem escutou qualquer um dos três álbuns prévios deste quarteto de Melbourne sentir-se-á em território familiar em “Love heart cheat code” (Brainfeeder). A constância da formação é um ingrediente a considerar: desde o início, em 2011, que o grupo tem Nai Palm na voz e guitarra, Paul Bender no baixo, Simon Mavin nos teclados e Perrin Moss na bateria. Desde o registo anterior, “Mood valiant”, de 2021, que gravam para a Brainfeeder, criada em Los Angeles pelo polímata Flying Lotus, e o emparelhamento bate certo: os lançamentos desta editora não reconhecem a necessidade de fronteiras entre o jazz, o hip-hop experimental, a eletrónica & etc., mas também aqui a identidade da obra é forte e o caminho parece fazer-se com uma naturalidade admirável. Evolução na continuidade.

Depois de recorrerem ao veterano e admirado produtor brasileiro Arthur Verocai em “Mood valiant”, para “Love heart cheat code” os Hiatus Kaiyote não mudam de país nem de comprovada sabedoria nos critérios do recrutamento, optando desta vez por Mario Caldato Jr. (Beastie Boys, Seu Jorge, Björk, Bebel Gilberto). As composições soam, em larga medida, a postais enviados de um hemisfério sul luxuriante e sem muros, em que o intenso tricotado instrumental sublima a fluidez do som em vez de terraplanar. Quer-se viver dentro de canções como “Telescope” e “Make friends” (neo-soul, leves e lúdicas, com janelas para vários mundos), “Dimitri” (empertigada, como um polvo a fixar-se a múltiplas ideias) e “Longcat” (multicolorida, psicadélica, fraseado como melopeias infantis, um desenho animado). A dupla final de “Love heart cheat code” abre para um portal paralelo: “Cinnamon temple” é funk-rock pesado, impaciente e esquizofrénico, da estirpe explorada por Prince dos anos 1990 em diante. Tática semelhante é usada na recriação de “White rabbit” – desconhece-se a medicação usada pelos Hiatus Kaiyote, se é que precisaram de alguma, mas este tufão sonoro em nada se assemelha à viagem da versão original, dos Jefferson Airplane. E isso é bom.