Conversar sobre a morte devia ser natural. Da morte dos nossos, dos outros, da nossa morte. Mas ainda temos barreiras culturais e sociais que nos impedem de desenvolver competências emocionais que nos ajudam a passar pelos momentos difíceis da finitude humana com serenidade.
Quando a mãe lhes morreu, há 17 anos, viram-se perante a primeira grande perda das suas vidas. Quatro irmãos. Personalidades distintas. Mónica, a mais velha, à época com 30 anos, nunca fez um esforço para frear a dor. Tudo acontecia de forma inconsciente. Falava com todos sobre o tema. Chorava. Chorava quando tinha vontade, quando as memórias lhe vinham à cabeça, quando tinha saudades. Escrevia na sua página de Facebook. “Eu estava a passar por aquele sofrimento e precisava de falar sobre isso.” E, mesmo sem ter noção na altura, hoje sabe que deitar tudo cá para fora, e encontrar acolhimento e consolo em quem a rodeava, foi o que mais a ajudou. A partilha permitiu a troca de experiências. “Ia encontrando pessoas que também passaram por perdas e que me diziam como as tinham superado. Havia empatia, diziam-me ‘estou contigo’.” Hoje, ainda chora se fala da mãe, mas essa morte já não lhe provoca uma angústia tão grande. “Fui falando e fazendo o luto.”
Emanuel, o mais novo, na altura com 15 anos, acabados de fazer, reagiu de forma diferente. Tudo acontecia de forma consciente. Não chorava – nem mesmo no funeral -, não falava. “Fazia tudo para não pensar no assunto. Queria emoções fortes. Queria estar com os amigos. Fazia tudo para sentir felicidade e afastar-me daquela memória.” Vedou a morte da mãe ao Mundo. “Não falava em casa. Não queria acrescentar mais dor à dor das minhas irmãs.” E quando os de fora lhe perguntavam algo, a resposta era sempre a mesma: “Não quero falar sobre isso.” A namorada que viria a ter, tempos depois, perguntava-lhe repetidamente pela mãe. Gostava de conhecê-la. Ele ficava incomodado.” Um dia, sem a avisar, levou-a ao cemitério, apontou-lhe a campa da mãe. “Está aqui.” A namorada chorou. Ele não. “E continuei a não falar.”
Passado mais ou menos um ano, os irmãos foram jantar. E, de repente, o artista do restaurante começou a cantar a música “Amor I love you”, de Marisa Monte. A mesma que a sua mãe lhes cantava. “Deixa eu dizer que te amo; Deixa eu pensar em você; Isso me acalma, me acolhe a alma; Isso me ajuda a viver.” Emanuel apenas ouviu essa primeira estrofe. Parecia um recado dos céus. E deixou, finalmente, que as lágrimas lhe caíssem pelo rosto. “Foi como se tivessem ligado um botão dentro de mim. Depois daquele dia, senti um grande alívio. Demorei muito tempo a digerir a situação. Falar era muito doloroso para mim.” Não é caso único.
Porque nos custa tanto falar da morte? “Nós humanos temos uma tendência natural para evitar tocar em temas desconfortáveis, evitar recordar experiências desagradáveis”, começa por explicar José Carlos Rocha, psicólogo, diretor de Centro de Psicologia do Trauma e do Luto e coordenador do mestrado em Psicologia da Saúde e da Neuropsicologia da CESPU. Ressalvando, contudo, a contradição do processo. “Por um lado, precisamos de falar dessas experiências difíceis para as integrarmos na nossa história e na maneira como vemos o Mundo. Por outro, precisamos de não o fazer, porque se estamos sempre a pensar na morte a nossa vida pára. Tem de ser numa dose equilibrada. E nem todos sabem fazê-lo.” Assim, evitar o tema não é, de todo, a melhor opção, porque ele acabará por bater-nos à porta. “Esses pensamentos precisam de ser integrados e falados. Se não lhes for dado um significado, a nossa mente vai precisar de lhes dar sentido. E, tipicamente, quando vamos dormir estes pensamentos aparecem. É um sinal de que o assunto precisa de ser falado. Falar ajuda, não resolve, mas ajuda.” Uma via que tem dois sentidos. Porque, se é preciso falar, é preciso haver quem consiga ouvir.
O trabalho de Mariana Abranches Pinto caminha nesse sentido. Ela é a mãe da Nini, a menina portuense a quem foi diagnosticada uma leucemia mieloblástica aguda, que, mesmo sabendo que ia morrer, quis quebrar o tabu da morte com as suas redes sociais, a que deu o nome “A morrer comigo”.
Mariana, perdeu a filha em junho de 2023. Quatro anos antes criou a Compassio, uma associação sem fins lucrativos que pretende construir comunidades mais compassivas e que trabalha em três eixos. O primeiro é sensibilizar e capacitar para a normalidade da morte e do luto. Aqui dinamizam-se muitos workshops, como os “Death Café”, os “Socorro. A minha prima está doente. O que é que lhe digo? O que é que não digo?” ou os “Todos vamos morrer. 100% de eficácia”.
O segundo eixo é dinamizar redes comunitárias colaborativas de cuidado compassivo à volta de pessoas sozinhas. E o terceiro são grupos de partilha para pessoas em luto e pessoas doentes.
“Já temos experiência de doença há muito tempo na família. Eu já tive cancro da mama, a Nini também teve um cancro dos dois aos quatro anos. Portanto, aos 15 anos, quando lhe foi diagnosticada leucemia, nós já tínhamos começado a trabalhar este tema”, refere Mariana. “Quando ela soube que ia morrer, aceitou a sua morte tão cedo e nunca, nunca, caiu dessa aceitação. É das coisas que mais me impressiona e isso tornou-nos muito mais capazes de aceitar a morte dela.” Um processo que não deixou de ser difícil, mas que, ao mesmo tempo, esteve sempre carregado de muita leveza. “De facto, foi tão duro, mas tão bonito, que realmente hoje o nosso luto, dos três [pai, mãe e irmão] está a ser muito sereno.” Sendo uma família católica, Mariana confessa que a religião lhe trouxe grande conforto, mas num sentido muito realista. “Claro que a fé nos ajudou, porque não acreditamos que a morte seja o fim, é apenas uma transição. Mas isto não é uma fé mágica. Não é um ‘agora vamos todos rezar e vai tudo ficar bem’. Não. É fé para vivermos as coisas da melhor forma possível. E o milagre foi a forma como as pessoas nos apoiaram, a forma como nós vivemos isto. Não é se há cura, se não há cura.”
A relação entre morte e sociedade é complexa e, muitas vezes, culturalmente condicionada. O padre Jorge Vilaça, responsável pelo Centro de Escuta e Acompanhamento Espiritual da Diocese de Braga, um gabinete que está presente em processos de dor e luto, afirma que a questão da morte é, antes de tudo, civilizacional e não religiosa. “Estamos diante de um novo tabu, onde o tema se tornou um dilema entre a pornografia da morte, que consumimos até à exaustão, e uma desumanização onde a morte é vista apenas como um problema técnico e não como o fim dos relacionamentos.” E, neste ponto, os enlutados não encontram lugar na sociedade. “Vivemos numa cultura que não integra a morte no conceito de vida perfeita e feliz, aqueles que estão em luto ficam deslocados. A falta de competências emocionais para lidar com a morte reflete a nossa distância da única certeza que temos na vida.”
As religiões, genericamente falando, “são o único ator social que coloca a morte no centro da vida”, defende Jorge Vilaça. Como a religião cristã, cujo símbolo principal é um homem morto, pregado na cruz. “A espiritualidade vê o ser humano não apenas como uma máquina, mas como um ser com alma e mundo interior. As religiões proporcionam um novo conceito de ser humano, que vai além do corpo físico que avaria, abrangendo um sistema de relações que dá significado à vida e à morte, oferecendo apoio comunitário e um conforto que ultrapassa o entendimento mecanicista da existência”, aponta. Algo que, no seu ponto de vista, devia de ser transversal a todas as sociedades.
Eduardo Carqueja, especialista em luto e diretor do serviço de psicologia e de cuidados paliativos do Centro Hospitalar Universitário de São João, toca no óbvio. “A morte é uma realidade da espécie humana, não temos como evitar. Quer falemos ou não dela. Não é por não falar que as coisas deixam de acontecer. O silêncio só acrescenta mais dificuldade. Se colocarmos a morte como sendo uma parte que não é da nossa vida, ela só nos vais causar ainda mais mal-estar. Temos de assumir que é algo inevitável.” Mas aqui podem entrar também outras questões, que tornam tudo mais complexo. A dimensão cultural, por exemplo. “O evitar que as crianças participem da realidade da morte, em funerais. A própria sociedade também nos condiciona. O que acontece é algo que nenhum de nós se pode escusar de um dia ter na vida: pessoas que vão morrer. Nós próprios vamos morrer.” O que o especialista pede é a construção de uma comunicação que transforme a morte no que ela é, natural. “Inconscientemente, achamos que somos infinitos e que não iremos morrer e que isso é uma coisa que só acontece aos outros. Mas, efetivamente, sem estarmos sempre a pensar e a falar na morte, – porque quando isso acontece podemos estar a entrar na dimensão patológica – o pensar na vida, sabendo que a morte faz parte dela, ajuda-nos a viver de uma forma melhor.” E em paz.